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2017-01-31

Poema de Amor - Fernando Namora

Se te pedirem, amor, se te pedirem
que contes a velha história
da nau que partiu
e se perdeu,
não contes, amor, não contes
que o mar és tu
e a nau sou eu.

E se pedirem, amor, e se pedirem
que contes a velha fábula
do lobo que matou o cordeiro
e lhe roeu as entranhas,
não contes, amor, não contes
que o lobo é a minha carne
e o cordeiro a minha estrela
que sempre tu conheceste
e te guiou — mal ou bem.

Depois, sabes, estou enjoado
desta farsa.
Histórias, fábulas, amores
tudo me corre os ouvidos
a fugir.

Sou o guerreiro sem forças
para erguer a sua espada,
sou o piloto do barco
que a tempestade afundou.

Não contes, amor, não contes
que eu tenho a alma sem luz.

...Quero-me só, a sofrer e arrastar
a minha cruz.

in "Relevos"

Fernando Gonçalves Namora (n. em Condeixa a 15 de abril de 1919; m. em Lisboa a 31 de janeiro de 1989)

2017-01-30

Sonhando - Júlio Salusse

Se a nossa vida é um lago de serenas
Ondulações, adormecido quando
Por ele passa alegremente o bando
Das multicores e gentis falenas;

Lago azul, onde a aurora molha as penas
Sempre que se levanta, ora banhando
Na fresca matinal as açucenas;

Meu doce amor, enquanto não morremos,
Como dois cisnes plácidos vaguemos
Sobre as águas tranquilas e azuladas,

Ouvindo ao longe o suspirar do vento
E contemplemos o azul do firmamento
Nas misteriosas noites estreladas.


JÚLIO Mário SALUSSE nasceu em Bom Jardim (RJ) a 30 de março de 1872 e morreu no Rio de Janeiro a 30 de janeiro de 1948

2017-01-27

Ilha dos Amores - Vasco da Gama Rodrigues

Lagoa das Sete Cidades, Açores

No vivo Mar Salgado concebida,
Entre remotas ondas balouçando,
E num manto de lendas rrepousando
Persiste oculta a Ilha Adormecida.

Ali onde sonhavam já perdida,
Ansioso de saudade alguém pairando,
Seu belo corpo inerte assinalando
O vê desnudo sem o Ar da Vida.

Sitiado pelo Reino do Ocidente,
- Lugar de Morte deste mundo certo -
Desfeito o Inferno irrompe o Oriente.

E neste espaço após o fim das dores
- Manhã nova doirando o Mar aberto
- Reluz sagrada a Ilha dos Amores.

(in «O Cristo das Nações», Sintra, 1995)


Vasco da Gama Rodrigues (nasceu em Paul do Mar, concelho da Calheta, Ilha da Madeira a 27 de janeiro de 1909; m. em 3 de maio de 1991).

2017-01-26

Quando eu morrer - Alfredo Dáskalos

Quando eu morrer
Não me dêem rosas
Mas ventos
Quero as ânsias do mar
Quero beber a espuma branca
Duma onda a quebrar
E vogar

Ah, a rosa dos ventos
A correrem na ponta dos meus dedos
A correrem, a correrem sem parar.
Onda sobre onda infinita como o mar.
Como o mar inquieto
Num jeito
De nunca mais parar.

Por isso eu quero o mar.
Morrer, ficar quieto,
Não.
Oh, sentir sempre no peito
O tumulto do mundo
Da vida e de mim.

E eu e o mundo.
E a vida.
Oh mar
O meu coração
Fica para ti
Para ter a ilusão
De nunca mais parar

Alexandre Mendonça de Oliveira Dáskalos nasceu na cidade do Huambo, na então antiga Nova Lisboa , a 26 de janeiro de 1924; faleceu a 24 de fevereiro de 1961 no sanatório do Caramulo)

2017-01-25

Saudades Não As Quero - Afonso Lopes Vieira

Bateram fui abrir era a saudade
vinha para falar-me a teu respeito
entrou com um sorriso de maldade
depois sentou-se à beira do meu leito
e quis que eu lhe contasse só a metade
das dores que trago dentro do meu peito

Não mandes mais esta saudade
ouve os meus ais por caridade
ou eu então deixo esfriar esta paixão
amor podes mandar se for sincero
saudades isso não pois não as quero

Bateram novamente era o ciúme
e eu mal me apercebi de que batera
trazia o mesmo ódio do costume
e todas as intrigas que lhe deram
e vinha sem um pranto ou um queixume
saber o que as saudades me fizeram

Não mandes mais esta saudade,
ouve os meus ais por caridade,
ou eu então deixo esfriar esta paixão,
amor podes mandar se for sincero,
saudades isso não pois não as quero.

in Antologia Poética

Afonso Lopes Vieira (n. em Leiria a 26 de janeiro de 1878 e faleceu em Lisboa a 25 de janeiro de 1946).

2017-01-24

No Bazar - António Manuel Couto Viana

Mercado de Iao Hon. Macau, Junho de 2008 - foto daqui

Mergulho-me na vida, na voz deste bazar,
Com lojas, tendas, vendedores de rua:
É um rio de rumor e cor, tentacular,
Que flui, reflui e, de repente, estua.

Afoga-me o fascínio da faiança, do jade,
Dos electrônicos subtis, sofisticados,
Dos adivinhos da felicidade
Com óculos severos de letrados.

Aqui, na margem de um afluente,
Junto de velhos móveis, de ferragens, de moedas,
De um deus irado, de outro sorridente,
Ambos sujos de pó, nuns farrapos de sedas.

De um disco fatigado de rock, da legenda
Que eu não decifro, com provérbios chins,
Senta-se atento à mão que, ávida, se estenda,
homem dos tintins.

(Viu ele um português, pertinaz e sem pressa,
De olhar estranho, magro, a longa barba preta,
Descobrir, entre o inútil, o valor de uma peça,
Com ciência de sábio e arte de poeta ?)

Além, fumega e aromatiza o gosto
A tenda dos petiscos. Tentação!
Como tudo apetece, quando exposto!
Mas, comê-lo… Não sei se sim se não.

Mais além, Hóng-Kông, no templo do Bazar,
Um bom mercado ao mercador promete
Se ele, submisso, lhe vem pôr no altar
A tangerina, a flor, e lhe acende um pivete.

Entro no Loc-Koc, "casa de tomar chá".
No alvor das madrugadas,
É uma gaiola imensa, durante o iam-chá
Sorvido entre gorgeios e asas excitadas.

Lá fora, o riquexó, hoje triciclo, rasa
A multidão: persegue uma nesga de espaço,
Levando a rapariga a caminho de casa,
Com os sacos das compras no regaço.

E, ao ritmo da rua e da emoção,
Os meus olhos descobrem, deslumbrados,
Navegando ao pulsar do coração,
Um navio vermelho de caracteres doirados!


António Manuel Couto Viana (n. em Viana do Castelo a 24 de janeiro de 1923, m. Lisboa, 8 de junho de 2010)

2017-01-23

Dia do Julgamento - Gabriel Nascente

Justiça Justiça imagem daqui

EU não vim para molestar o sentimento
daqueles que perderam o caminho das lágrimas.
Nem tampouco para ulcerar a dignidade sacra
do pão sobre a mesa. Eu vim, amigo, para falar
desta ferramenta fundamental que é a vida,
destes olhos naufragados na rebelião de um pranto,
da tristeza sem fim de minha mãe
que toma remédio de hora em hora,
do cansaço comprido de seus olhos
pedindo sossego pro mundo —
sobretudo, amigo, para falar
do regresso imponderável de todas as manhãs
da estrela magnífica que clareia
como espuma
nos olhos da lavadeira,
daqueles que trabalham com os mortos
e sabem de cor a numeração das lágrimas,
dos que constroem apartamentos
e dormem em camas de zinco,
dos que tiram fotografias
ao lado dos políticos,
da poesia, sobretudo da poesia,
que é mais forte que um boi
na canga de seu ofício,
da poesia
que é mais vulgar
que um beijo no prostíbulo
da poesia
que cancela o desespero
que maltrata o sofrimento
que proclama a paz
da poesia
que navega em nosso corpo
como um grito numa mansão deserta
da poesia
que é mais bela
que um trem na mata
da poesia
que é mais bela
que um cantil cheio d'água
da poesia
sobretudo da poesia,
que é como a presença de um rio
entrando pela noite dos escombros,
— ave muito clara, ternura,
deixa-me morrer
entre as estrelas.

Gabriel José Nascente (n. a 23 de janeiro de 1950, Goiânia (GO), Brasil)

2017-01-20

Epigramas - Ernesto Cardenal

Te dou Cláudia, estes versos,
porque tu és a dona.
Os escrevi simples
para que tu os entendas.
São para ti somente,
mas se a ti não te interessam,
um dia se divulgarão,
talvez por toda Hispanoamerica…
E se ao amor que os ditou,
tu também o desprezas,
outras sonharão com este amor
que não foi para elas.
E talvez verás,
Cláudia,
que estes poemas, (escritos para conquistar-te)
despertam em outros casais
enamorados que os leiam
os beijos que em ti
não despertou o poeta.

Ao perder-te eu a ti,
tu e eu perdemos:
Eu, porque tu eras
o que eu mais amava
e tu porque eu era
o que te amava mais
mas de nós dois
tu perdes mais que eu:
porque eu poderei amar a outras
como te amava a ti,
mas a ti não te amarão
como te amava eu.

Moças que algum dia
leiam emocionadas estes versos
e sonheis com um poeta:
Sabei que eu os fiz
para uma como vós
e que foi em vão.

(Tradução de Héctor Zanetti)

Ernesto Cardenal Martínez (nasceu em 20 de janeiro de 1925 em Granada na Nicarágua).



Original

Te doy Claudia, estos versos,
porque tú eres su dueña.
Los he escrito sencillos
para que tú los entiendas.
Son para ti solamente,
pero si a ti no te interesan,
un día se divulgarán,
tal vez por toda Hispanoamérica…
Y si al amor que los dictó,
tú también lo desprecias,
otras soñarán
con este amor
que no fue para ellas.
Y tal vez verás,
Claudia,
que estos poemas,
(escritos para conquistarte a ti)
despiertan
en otras parejas
enamoradas que los lean
los besos que en ti
no despertó el poeta.

Al perderte yo a ti,
tú y yo hemos perdido:
yo, porque tú eras
lo que yo más amaba,
y tú, porque yo era
el que te amaba más.
Pero de nosotros dos,
tú pierdes más que yo:
porque yo podré
amar a otras
como te amaba a ti,
pero a ti nadie te amará
como te amaba yo.

Muchachas que algún día
leaís emocionadas estos versos
Y soñéis con un poeta
Sabed que yo los hice
para una como vosotras
y que fue en vano.



2017-01-19

Última Canção - Eugénio de Andrade



Se puderes ainda
ouve-me, rio de cristal, ave
matutina. ouve-me,
luminoso fio tecido pela neve,
esquivo e sempre adiado
aceno do paraíso.
Ouve-me, se puderes ainda,
Devastador desejo,
fulvo animal de alegria.
Se não és alucinação
ou miragem ou quimera, ouve-me
ainda: vem agora
e não na hora da nossa morte
- dá-me a beber a própria sede.

José Fontinhas, que usou o pseudónimo literário de Eugénio de Andrade, nasceu em 19 de janeiro de 1923 na Póvoa de Atalaia, Fundão; m. no Porto a 13 de junho de 2005

2017-01-18

Testamento de D. Burro, Pai dos Asnos - Padre Camões


(...)
Na pobre estrebaria em que me vejo,
cheio de pulgas, piolhos, percevejos,
eu D. Burro, pai dos asnos calcitrantes,
que o mundo vai deixar dentro de instantes,
vendo-me já tanto de anos carregado,
no mais triste e lastimoso estado,
sem abrigo de pai nem de parentes,
da cabeça já calvo, e já sem dentes,
do meu dono desprezado, e abatido,
ingrata satisfação de o ter servido;
vendo que neste mundo me não resta
coisa com que fazer a minha festa,
remédio não hei já senão prestar-me
fazer minha viagem, preparar-me:
essa viagem de todos tão temida,
pois os dias termina, acaba a vida.
É certo que minha alma irracional
não goza os privilégios de imortal,
mas como de cá vou pra não tornar,
e várias coisas tenho d'arranjar
- além de amigos meus e de parentes
(não que bem descendentes ou ascendentes);
por isso tomarei sequer urna hora,
na qual sem dúvidas e sem demora,
para exemplo a futuros e vindouros,
dispor eu possa bem de meus tesouros.
Como é fácil anular um testamento
o meu quero fazer com fundamento.
Por que o não posso fazer por minha mão,
impedido de angústia e de aflição,
ao Senhor Vigário eu peço mo escreva,
não porque ele favor algum me deva,
mas por ser sua letra mui par'cida
com a que eu escrevia em minha vida
quando pra amanuense seu me preparava,
pois só tal amanuense lhe quadrava.

(...)
Quarenta anos, pouco mais, tenho de idade:
sempre foram pra mim d'austeridade;
nunca neles senti barriga cheia
em almoço, jantar, merenda ou ceia.
Só quando era pequeno, lá no Corvo,
minha avó me frigiu um dia um ovo.
Estando pra o comer, eis de repente
meu avô chega, velho e impaciente,
e não só o papou ele dum bocado
mas até minha avó pôs em tal estado
que a pobre prometeu com juramento
não se embaraçar mais co'o meu sustento.
(...)

Meu corpo quero seja sepultado
aí no canto dum qualquer cerrado,
onde de mim lembrança mais não possa haver;
mas porquanto bem pode suceder
o almotacé pra o açougue me mande ir,
e à sua ordem ninguém pode resistir,
cada um de por si vá preparado
pra me levar de carne o seu cruzado.
Mas saiba quem a leve, lá por teimas:
comendo-a, morre cheio de almorreimas;
porque não pode ser que, em tal idade,
minha carne não cause enfermidade.

Herdeiros

Item. Precisando nomear testamenteiros,
o Capitão Silvestre é o primeiro;
Felipe António fique de segundo;
e suposto que me acho moribundo,
sempre nomeio terceiro aristocrácio,
meu compadre o Alferes Francisco Inácio.
P'lo trabalho de testamentaria,
peças lhes deixo da maior valia:
ao primeiro, meu óculo de alcançar,
um óculo tão distinto e singular
que com ele até mesmo observava
quantas cricas de burra encontrava.
(...)

Item. Ao segundo meu testamenteiro,
eu deixo quinze réis em bom dinheiro,
porém co'a obrigação, todos os anos,
de os pagar aos padres franciscanos
por mesada daquele pouco tempo
em que estive de estudante no convento.

Item. Ao terceiro, pouco tenho que deixar,
pois são muitos os que têm de me herdar,
e os meus bens, como sabem, poucos são.
Mas pra fugir a toda a ingratidão
as canelas lhe deixo duma perna
e meu terçado feito já pela moderna.
Em o tendo não mais use espadim,
pois é traste que nem servia a mim.

- Obrigações primeiras satisfeitas,
usemos com os outros às direitas.

(...)

Item. Ao Padre Tesoureiro mando dêem
meu couro pra chamarra que não tem;
pois se há de comprar baeta em loje,
faca uma cor de burro quando foge.
E depois, quando deste mundo eu for,
não quero mais ouvir que ante o Ouvidor
aparece com calças à maruja,
que é ação muito feia, muito suja.
Se o Ouvidor até 'qui dissimulou,
foi força de prudência de que usou;
pois eu se ouvidor fosse não sofria
uma tão temerária grosseria.

(...)

Item. Deixo ao Sr. Juiz por bem da lei
quantas lágrimas neste mundo eu chorei,
as quais ordeno sejam misturadas
co'aquelas que têm sido derramadas
por tanto pobre a quem sua mercê
cadeias, ferros manda que se dê.

(...)

Item. Meu contraparente João Bernardo,
pra ostentação maior de seu estado,
mando se dê depois da minha morte
meu rabo, que lhe sirva de chicote.
E se não se contentar com esta deixa,
pra que de mim não forme alguma queixa
dar-lhe-ão mais uma dúzia de bolotas
e couro das minhas pernas pra umas botas.

Item. A António Furtado Nunes, meu parente,
a quem Deus não fez como a outra gente,
deixo por minha morte duas pipas
do miolo que me saía pelas tripas.

(...)

Item. A minha prima Maria Joaquina
deixo dois gamelões da minha urina:
o caldo só, pois os cascos não,
porque estes meus também não são.
Com ela poderá dar uma calda
e alvejar quando quiser a sua fralda.

(...)

Item. A José Paciente e a Francisco Dente,
deixo em legado pio o meu pendente,
uma jóia de tanta estimação
que render não pode menos de um tostão.

(...)

Item. A João Castelo e sua irmã Isabel,
o meu sangue para um sarapatel;
mas com a rigorosa obrigação
que pelo olho do eu mo chuparão,
pois não quero se me faça anatomia
nem do corpo mo tirem por sangria.

(...)

O meu olho do eu já o deixei
a meu primo José, porém errei
em deixar-lho para ele assobiar,
pois nisso os beiços podem bem bastar.
Mando pois que embrulhado em um papel
o remetam a Alexandre Pimentel;
que o ponha no lugar do que não tem,
e só assim lhe pago o mal com bem.

(...)

A meu primo Manuel Furtado Sousa
Desejava deixar-lhe alguma cousa
Mas, como os meus bens findos são,
Só lhe deixo um cagalhão.

José António Camões (Fajãzinha, Ilha das Flores, Açores 10/11 de dezembro de 1777 — Ponta Delgada, 18 de janeiro de 1827)

2017-01-17

Adeus - Miguel Torga

É um adeus…
Não vale a pena sofismar a hora!
É tarde nos meus olhos e nos teus…
Agora,
O remédio é partir discretamente,
Sem palavras,
Sem lágrimas,
Sem gestos.
De que servem lamentos e protestos
Contra o destino?
Cego assassino
A que nenhum poder
Limita a crueldade,
Só o pode vencer a humanidade
Da nossa lucidez desencantada.
Antes da iniquidade
Consumada,
Um poema de líquido pudor,
Um sorriso de amor,
E mais nada.


Miguel Torga mais precisamente Adolfo Correia da Rocha, nasceu em São Martinho de Anta, Sabrosa, Trás-os-Montes, a 12 de agosto de 1907; morreu em Coimbra a 17 de janeiro de 1995.

2017-01-16

Silêncio - Ulisses Duarte

Nesta memória onde o silêncio fala
a viajar no meu sofá sem rumo,
percorro o mundo, sem sair da sala,
com palavras de fumo.
É o silêncio do musgo preso ao muro
de retardar a infância...
Por isso, ainda hoje me procuro
e perco na distância!
Há silêncios que voam como eu
num espanto de luz e nevoeiro
com uma estrela a navegar no céu
na mão dum marinheiro...
Nesta memória onde o silêncio fala
de lagos azuis ou doutra cor
onde um menino cresce e não se cala
quando fala de amor!
Ainda hoje o lago tem pedaços
com bailados de sombras e penumbra
pra recordar os sonhos onde os lábios
o coração afunda...
A fantasia dorme em teu regaço
e Pã dedica a Ceres o seu regresso
quando o silêncio quebra em mil pedaços
pra renascer num verso!

in PALAVRAS COM DISTÂNCIA

Guilherme Ulisses Duarte nasceu em Matosinhos em 11 de março de 1923, tendo falecido em Lisboa em 16 de janeiro de 2008

2017-01-13

Amor - Salvador Novo (no 43º aniversário do desaparecimento)

Amar es este tímido silencio
cerca de ti, sin que lo sepas,
y recordar tu voz cuando te marchas
y sentir el calor de tu saludo.

Amar es aguardarte
como si fueras parte del ocaso,
ni antes ni después, para que estemos solos
entre los juegos y los cuentos
sobre la tierra seca.

Amar es percibir, cuando te ausentas,
tu perfume en el aire que respiro,
y contemplar la estrella en que te alejas
cuando cierro la puerta de la noche.

Salvador Novo López (n. Cidade de México, México, 30 de julho de 1904,; m. Ib., 13 de janeiro de 1974)

2017-01-12

Soneto - Rubem Braga

Amendoeira em flor imagem daqui

E quando nós saímos era a Lua,
Era o vento caído e o mar sereno
Azul e cinza-azul anoitecendo
A tarde ruiva das amendoeiras.

E respiramos, livres das ardências
Do sol, que nos levara à sombra cauta
Tangidos pelo canto das cigarras
Dentro e fora de nós exasperadas.

Andamos em silêncio pela praia.
Nos corpos leves e lavados ia
O sentimento do prazer cumprido.

Se mágoa me ficou na despedida
Não fez mal que ficasse, nem doesse –
Era bem doce, perto das antigas.


Rubem Braga (nasceu em Cachoeiro do Itapemirim, ES, a 12 de janeiro de 1913; m. Rio de Janeiro, 19 de dezembro de 1990)

2017-01-11

Vigílias (I) - Al Berto

Janela para o mar Janela para o mar imagem daqui

quando aqui não estás
o que nos rodeou põe-se a morrer

a janela que abre para o mar
continua fechada só nos sonhos
me ergo
abro-a
deixo a frescura e a força da manhã
escorrerem pelos dedos prisioneiros
da tristeza
acordo
para a cegante claridade das ondas

um rosto desenvolve-se nítido
além
rasando o sal da imensa ausência
uma voz

quero morrer
com uma overdose de beleza


e num sussurro o corpo apaziguado
perscruta esse coração
esse
solitário caçador


extraído de Antologia da Poesia Portuguesa Contemporânea, Um panorama, organização de Alberto da Costa e Silva e Alexei Bueno, Lacerda Editores

Alberto Raposo Pidwell Tavares - Al Berto (nasceu em Coimbra a 11 de janeiro de 1948; m. em Lisboa a 13 de junho de 1997.

2017-01-10

Pastoral - António Sardinha

Foto: Patos daqui


Todos os dias quando morre o dia,
Pões-te a chamar os patos para os contar;
E os patos, conhecendo quem os cria,
Vêm para ti de longe a esvoaçar

e logo te acompanham. Que alegria
anima o teu rebanho singular!
Parece ser dum conto que eu ouvia,
-«Era uma vez...» - , à gente do meu lar.

«Filha de rei, com iras de criança,
guardando patos na ribeira mansa,
foi coisa de pasmar que nunca vi!»

Pois é a história da princesa loura
Que tu me fazes recordar, Senhora,
Assim com essa corte ao pé de ti!

in A Circulatura do Quadrado: Alguns dos Mais Belos Sonetos de Poetas cuja Mátria é a Língua Portuguesa , Edição UNICEPE, 2004

António Maria de Sousa Sardinha (n. Monforte, 9 de setembro de 1888; m. Elvas, em 10 de janeiro de 1925)

2017-01-09

Paisagem Pelo Telefone - João Cabral de Melo Neto


Sempre que no telefone
me falavas, eu diria
que falavas de uma sala
toda de luz invadida,

sala que pelas janelas,
duzentas, se oferecia
a alguma manhã de praia,
mais manhã porque marinha,

a alguma manhã de praia
no prumo do meio-dia,
meio-dia mineral
de uma praia nordestina,

Nordeste de Pernambuco,
onde as manhãs são mais limpas,
Pernambuco do Recife,
de Piedade, de Olinda,

sempre povoado de velas,
brancas, ao sol estendidas,
de jangada, que são velas
mais brancas porque salinas,

que, como muros caiados
possuem luz intestina,
pois não é o sol quem as veste
e tampouco as ilumina,

mais bem, somente as desveste
de toda sombra ou neblina,
deixando que livres brilhem
os cristais que dentro tinham.

Pois, assim, no telefone
tua voz me parecia
como se de tal manhã
estivesses envolvida,

fresca e clara, como se
telefonasses despida,
ou, se vestida, somente
de roupa de banho, mínima,

e que por mínima, pouco
de tua luz própria tira,
e até mais, quando falavas
no telefone, eu diria

que estavas de todo nua,
só de teu banho vestida,
que é quando tu estás mais clara
pois a água nada embacia,

sim, como o sol sobre a cal
seis estrofes acima,
a água clara não te acende:
libera a luz que já tinhas.


in 366 poemas que falam de amor, uma antologia organizada por Vasco da Graça Moura, Quetzal Editores

João Cabral de Melo Neto (n. Recife, Pernambuco em 9 de janeiro de 1920; m. Rio de Janeiro, 9 de outubro de 1999).

2017-01-06

SONETO XXXI - Reis Quita



Quando em meu desvelado pensamento
O teu formoso gesto se afigura,
Não sei que afecto sinto, ou que ternura,
Que a toda esta alma dá contentamento.

Ali fico num largo esquecimento,
Contemplando na minha conjectura
De teu sereno rosto a graça pura,
De teus olhos o doce movimento.

Porém logo a inconstante fantasia
Me acorda o entendimento arrebatado,
E desfaz todo o bem que me fingia,

Sendo tal este gosto imaginado,
Que de Amor outra glória eu não queria
Mais que trazer-te sempre em meu cuidado.


Domingos dos REIS QUITA nasceu em Lisboa a 6 de Janeiro de 1728 e aí morreu, tuberculoso, a 26 de Agosto de 1770.

2017-01-05

Ponderação do Rosto e Olhos de Anarda - Manuel Botelho de Oliveira

Quando vejo de Anarda o rosto amado,
Vejo ao céu e ao jardim ser parecido
Porque no assombro do primor luzido
Tem o sol em seus olhos duplicado.

Nas faces considero equivocado
De açucenas e rosas o vestido;
Porque se vê nas faces reduzido
Todo o império de flora venerado.

Nos olhos e nas faces mais galharda
Ao céu prefere quando inflama os raios,
E prefere ao jardim, se as flores guarda:

Enfim dando ao jardim e ao céu desmaios,
O céu ostenta um sol, dois sóis Anarda,
Um maio o jardim logra; ela dous maios.

Extraído de Rosa do Mundo, 2001 Poemas para o Futuro, Porto Editora
Manuel Botelho de Oliveira (n. Salvador, Bahia, Brasil, 1636 — m. Salvador, 5 de janeiro de 1711)

2017-01-04

Quando ?!... - Casimiro de Abreu

Não era belo, Maria,
Aquele tempo de amores,
Quando o mundo nos sorria,
Quando a terra era só flores
Da vida na primavera?
- Era!

Não tinha o prado mais rosas,
O sabiá mais gorjeios,
O céu mais nuvens formosas,
E mais puros devaneios,
A tua alma inocentinha?
- Tinha!

E como achavas, Maria,
Aqueles doces instantes
De poética harmonia
Em que as brisas doudejantes
Folgavam nos teus cabelos?
- Belos!

Como tremias oh! Vida,
Se em mim os olhos fitavas!
Como eras linda, querida,
Quando d'amor suspiravas
Naquela encantada aurora!
- Ora!

E diz-me: não te recordas
- Debaixo do cajueiro -
Lá da lagoa nas bordas
Aquele beijo primeiro?
Ia o dia já findando ...
- Quando?!...

Casimiro José Marques de Abreu (n. na fazenda da Prata, no atual município de Silva Jardim (RJ), em 4 de janeiro de 1839; m. na fazenda do Indaiaçu, no atual município de Casimiro de Abreu (RJ), em 18 de outubro de 1860).

2017-01-03

o soneto encontrado na garrafa - Vasco da Graça Moura

Ilha desertaIlha deserta foto daqui

é a ti que eu quero nesta ilha deserta:
livro nenhum, quadro nenhum, nem disco
(gosto de tanta coisa que faísco
mas a escolher assim nunca se acerta).

quero trazer-te a ti, ágil, desperta,
despenteadamente a cada risco,
e viver de algas, peixe e marisco
e nunca mais fazer sinais de alerta

e os navios ao longe ver passar,
enquanto a roupa seca na palmeira
(esta ilha tem uma, de maneira
que não é só rochedo e à roda o mar).

e tu entre corais, náufraga e nua,
a boiar no meu peito à luz da lua.

in Os dias do Amor, um poema para cada dia do ano; recolha, selecção e organização de Inês Ramos, Prefácio de Henrique Manuel Bento-Fialho; Ministério dos Livros

Vasco Navarro da Graça Moura nasceu na Foz do Douro, Porto, a 3 de Janeiro de 1942 e faleceu em Lisboa a 27 de abril de 2014.

2017-01-02

Descansa, borboleta branca - Eduardo Guerra Carneiro

Borboleta Branca


Descansa, borboleta branca,
em minhas mãos abertas e retoma
o teu breve voar de um só dia.
Vens da noite misteriosa, espírito
de outro corpo. Que luz
de súbito se faz nesta loucura?
Melancolia, talvez, morte
chorada. Lanço-te ao vento.
Para que o fogo não volte
a queimar-te as asas.
A medo, terror mesmo, horas passadas,
olho-te tombada nesta sala.
Regressaste aqui, para morrer.
Mas à vida te devolvo. Voa, borboleta!


Eduardo Guerra Carneiro (n. em Chaves, a 4 de outubro de 1942; m. Lisboa a 2 de janeiro de 2004)