O anoitecer situa as coisas na minha alma
Como as cadeiras arrumadas
Quando os amigos partiram.
Meus degraus ainda têm a passada do adeus,
Lá quando uma palavra cria tudo,
E o resto, fechada a porta,
É posto nas mãos de Deus.
Então, à minha janela,
Tudo repousa e larga o aro dos conjuntos,
Tudo vem, com um gesto secreto e confiado,
Pedir-me o molde e o amor do isolamento,
Como se um desconhecido
Passasse e pedisse lume
E eu, sem reparar, lho estendesse:
Quando quisesse conhecê-lo,
Só a minha brasa ao longe,
Na noite que se faz pelo peso dos rios
E vive de fogo dado.
Assim nocturno, sou
O suporte de quem não tem para a consciência,
Que é como não ter para pão:
As coisa cegas
Prendem-se a mim,
Ao meu olhar, que é único na noite
Pelo seu grande alcance de humildade,
E fico cheio delas,
Como estes sítios ermos, junto de uma cidade,
Cemitérios de tudo, lugares para cães e bidons velhos;
Fico cheio da pobreza e do sinal das coisas,
Como um retrato de gente pobre é pobre e gauche
(Vale a recordação),
Mas sinto-me, ao mesmo tempo seco cheio de tacto
Como se fosse o seu bordão
(Eu, Comovido a Oeste, 1940)
Poema extraído de Poemas Portugueses Antologia da Poesia Portuguesa do Séc. XIII ao Séc. XXI; Selecção, organização, introdução e notas de Jorge Reis-Sá e Rui Lage; Prefácio de Vasco da Graça Moura.
Vitorino Nemésio Mendes Pinheiro da Silva (n. Praia da Vitória, Ilha Terceira, Açores a 19 de Dezembro de 1901 — m. em Lisboa, 20 de Fevereiro de 1978)
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