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2016-07-14

ODE À GRAÇA - António Quadros

A sete amigos


Na hora cinzenta da descrença,
no fundo da negação,
no tempo hostil da desarmonia,
eu canto a graça,
Senhor,
canto a graça invocada,
canto a graça inesperada,
canto a graça quotidiana
e canto a graça invulgar
que oferece à alma desgarrada
um novo ar para respirar.

Conheço bem a luta da existência,
a feira das vaidades,
a guerra dos poderes.
Conheço a realidade hostil e desgastante
dos corações humilhados a vingarem-se
das ambições em liberdade a descerem sem cessar
para o que julgam o mais nobre e o mais alto.
Conheço o desprezo e o despeito,
conheço da injustiça o travo
e da escravidão o temor e o tremor.
Conheço a doença e a morte,
conheço a saudade e a angústia,
conheço também a revolta
que nos leva raivosamente pelas ruas,
altas horas da noite planeando desforras.
Sei o que é ver na beleza fealdade
e troçar de valores e ideais.
Sei olhar o bem
vendo o mal,
sei fugir,
sei odiar,
sei o que é viver em desacor
ferido e ferino,
turbilhão de sentimentos recalcados
num universo hostil e perigoso.
Mas nesta hora cinzenta,
Senhor,
na hora do mal,
na hora da desarmonia,
eu canto a graça,
canto a graça invocada,
canto a graça inesperada,
canto a graça quotidiana
e canto a graça invulgar
que oferece à alma desgarrada
um novo ar para respirar.
Que volta de maravilha,
quando a nossa alma,
ferida,
tudo aceita como prova,
e se encontra por encanto
numa realidade nova
numa vida transcendida
em que a história
é providência,
em que a memória
é vivência
de fantástica aventura,
de ciladas,
de embuscadas,
de traições,
de prisões,
de um jogo prodigioso
de exacto significado.
Que volta de maravilha,
quando a paisagem, radiosa, se colora,
quando o sol brilha sobre as águas turvas,
quando, solitários, alguém nos faz companhia
e a nossa alma, confortada, enlevada,
se dá toda aos homens e ao universo.
Que volta de maravilha,
Senhor,
o beijo da amada,
o despertar do filho,
a árvore plantada
e a obra por nossas mãos conseguida.
O ritmo do ser
faz-se nosso
e o coração, batendo-nos no peito
respira como Deus a criação.
Que volta de maravilha,
quando os fumos se dissipam,
quando as dúvidas se desfazem,
quando todos os elementos em conflito
se integram no mesmo movimento
e quando, atónitos,
reconhecemos o fim e o princípio,
a luz que separa as sombras,
a razão universal e misteriosa
de que todo o mundo, inteiro e vário,
é indício,
é cifra,
é sinal
que o mal
não nos deixava ler.
Protagonista encoberta,
companheira generosa e disponível,
invisível promessa que mil vezes
nos estende a sua mão aberta
a graça segue-nos sempre,
atena,
próxima,
dentro e fora de nós,
ao alcance da voz
e do silêncio.
Mas nós, desatentos,
a esquecemos, e por isso,
na hora cinzenta da descrença,
no fundo da negação
no tempo hostil da desarmonia,
eu canto a tua graça,
Senhor,
eu canto a graça invocada,
eu canto a graça inesperada,
eu canto,
eu canto a graça.

in Imitação do Homem, Espiral, Lisboa, 1966, pp. 70-73

António Gabriel de Quadros Ferro (n. Lisboa, 14 de julho de 1923 — f. Lisboa, 21 de março de 1993)

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