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2015-11-25

Outro dia - Irene Lisboa

Aqui está
o camion desmantelado,
com falta de uma guarda
e três hostis pregos, curtos,
à vista...
e a guita de o puxar
atirada para trás...
Aqui está,
onde e como o deixaste,
meu afilhado.

Nasceste,
diz a tua mãe,
para ela conhecer a felicidade.
O que ela me contou, um dia,
ainda há pouco tempo,
do ditoso facto
do teu nascimento,
perturbou-me.

Guarda ela a sensação
dos primeiros gozoz
que lhe deste.
Parecia-lhe,
primeiro por te sentir viver com ela,
e depois a par dela,
perto do seu bafo,
que tudo quanto se tinha dito
do amor
andava desfigurado,
exagerado...
que nada ainda se dissera
que valesse a pena ser dito...
Amor verdadeiro,
perfeito, inteiro,
sem condições,
era o que tu, filho dela,
lhe davas a conhecer!

Eu ouvia-a, pensando:
realmente,
aquele amor, só ele!
durante meses e meses
a imunizou,
a livrou de profundos desgostos...
revestiu de poderes...
Ó doce menino!
Sentir hoje os teus bracinhos
ao meu pescoço,
os teus beijinhos na minha cara,
ouvir a tua voz, tão fresca!
e o teu assobio,
que quer initar o melro,,,
é ter grandes satisfações.

Ó ternura,
ó divina sensualidade!

Tu, afilhado,
e a tua irmãzinha,
quando em mim poisam
as boquinhas,
e quando me abraçam,
fazem-no efusivamente,
para gozar...
Sinto que com isso gozam,
tal como eu
Sensualidade divina
e correspondida
de todo, todo o amor!

Mas quando os vejo andar,
fora e dentro,
a brincar e a questionar,
parece-mem também,
que um mundo novo,
inocente e estranho,
se constrói perto do nosso;
um mundo de pássaros
ou de insectos,
agitado,
gárrulo...

Da tua irmã,
Diz várias vezes a tua mãe:
é como nós,
menos calma do que ele,
mas mais sentida
e voluntariosa...

Seres pequeninos!
Ver-vos viver
recolher,
aspirar a graça
das vossas existências,
que começam a abrir
e a tomar cor,
que se vão espiritualizando...
dá-me, quase, pena de morrer!
de vos perder!

É blasfemo, não é?
monstruoso!
invocar a morte,
pensando em vós?...

Vós que sois para mim?
Uma luz de oiro!
Uma luz que me banha,
que me cega um pouco...
um véu que se interpõe
entre mim e os outros.


Extraído de Cem Poemas Portugueses sobre a Infância - selecção, organização e introdução de José Fanha e José Jorge Letria, Terramar

Irene Lisboa (n. Casal da Murzinheira, Arruda dos Vinhos, 25 de dezembro de 1892; m. Lisboa, a 25 de novembro de 1958)

Da mesma autora: Jeito de Escrever

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