Que vens contar-me
se não sei ouvir senão o silêncio?
Estou parado no mundo.
Só sei escutar de longe
antigamente ou lá para o futuro.
É bem certo que existo:
chegou-me a vez de escutar.
Que queres que te diga
se não sei nada e desaprendo?
A minha paz é ignorar.
Aprendo a não saber:
que a ciência aprenda comigo
já que não soube ensinar.
O meu alimento é o silêncio do mundo
que fica no alto das montanhas
e não desce à cidade
e sobe às nuvens que andam à procura de forma
antes de desaparecer.
Para que queres que te apareça
se me agrada não ter horas a toda a hora?
A preguiça do céu entrou comigo
e prescindo da realidade como ela prescinde de mim.
Para que me lastimas
se este é o meu auge?!
Eu tive a dita de me terem roubado tudo
menos a minha torre de marfim.
Jamais os invasores levaram consigo as nossas torres de marfim.
Levaram-me o orgulho todo
deixaram-me a memória envenenada
e intacta a torre de marfim.
Só não sei que faça da porta da torre
que dá para donde vim.
in Poemas Portugueses Antologia da Poesia portuguesa do Séc. XIII ao Séc. XXI; selecção, organização, introdução e notas de Jorge Reis-Sá e Rui Lage, Porto Editora
José Sobral de Almada Negreiros (n. em S. Tomé e Príncipe a 7 Abr 1893; m. 15 de Junho de 1970 em Lisboa)
Ler do mesmo autor, neste blog:
Aconteceu-me
Mãe! Vem ouvir...
Esperança
Homem transportando o cadáver de uma mulher
Taça de Chá
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