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2013-04-17

No tempo em que os homens falavam - Adolfo Simões Müller

Quisera uma palavra virginal,
uma palavra em flor, novinha em folha
- minha, para meu uso pessoal,
em vez dos mil milhões que tenho à escolha…

As palavras perderam o sentido,
perderam os sentidos, num desmaio…
Se a gente pensa corpo, diz vestido;
e se diz música é trovão e é raio!

Depois, sabe-se tudo. Porco é tó…
Chefe etíope é rãs… Amor e ódio
são sinónimos… Letras grega? É ró…
N-A é o símbolo do sódio…

Ai as palavras cruzam-se no espaço
(só o que é surdo e cego o não descobre):
eléctricos fluviais, ponto e traço
- como nos versos de António Nobre.

Há-de chegar um dia… Dor secreta:
onde li isto? Assim se gera o plágio.
Há-de chegar um dia que o poeta,
Impassível, assista ao seu naufrágio.

Nesse mundo sem versos e sem alma,
lembrar-se-á (allegro ma non troppo…)
quando os homens falavam: doce e calma
era de fábula, de Fedro e Esopo.

In: Moço, Bengala e Cão

Adolfo Simões Müller (n. em Lisboa, 18 de Agosto de 1909; m. em 17 de Abril de 1989)

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