Capítulo XVII
Era meio dia, um meio dia de verão ardente, asfixiante, calcinador, a hora em que tudo repousa, em que as aves se escondem na folhagem, as plantas inclinam as sumidades, desfalecidas de seiva, e os ribeiros quase nem murmuram, de débeis e exaustos que vão.
Nem uma ténue viração fazia sussurrar as alamedas e os soutos nos vales ou os pinheiros dos montes.
Apenas pelas sarças volteavam, como em danças caprichosas, enxames de insetos alados, sendo o seu zumbido importuno, ou o cantar longínquo dos galos, os únicos sons a interromperem o silêncio daquela hora.
Os caminhos e os campos estavam desertos; povoadas e fumegantes as cozinhas, onde a família do lavrador se reúne para a refeição principal do dia.
Mas quem estendesse a vista pelo extenso lanço de estrada a macadame, que corta em linha reta a povoação, e onde, naquele momento, o sol batia em cheio sem ser impedido por a menor folha de árvore, ou beira de telhado, descobriria o vulto de um cavaleiro, caminhando a trote e envolto na densa nuvem de poeira, levantada pelos pés da cavalgadura.
Este cavaleiro era João Semana.
Trajava com toda singeleza o velho cirurgião. Um fato completo de linho cru, botas amarelas de solidez de construção, à prova de todo o tempo, chapéu de palha, de abas descomunais, tudo abrigado daquele sol canicular por uma enorme umbela de paninho vermelho, rival em dimensões de uma tenda de campanha, eis o vestido característico do nosso homem.
As rédeas flutuavam à solta, sinal evidente da distração do cavaleiro e dos admiráveis instintos e superior discrição da alimária, que mostrava conhecer a palmos o caminho de casa e para ela se dirigia mais apressada que de costume.
Causava dó olhar para a fisionomia de João da Semana naquela ocasião. As faces de vermelhas, que naturalmente eram, quase se lhe haviam feito negras; o suor corria-lhe, como lágrimas pelas faces abaixo.
Mas o heróico octogenário não desanimava. Sorvia filosoficamente a sua pitada, assoava-se com ruído, e soltando depois um desses ahs, bem guturais - eloquentíssima expressão das delícias que o olfato pode proporcionar a um mortal - dava mostras de consolado.
De caminho, ia João Semana lançando um olhar de comiseração para os milhos dos campos adjacentes à estrada, algum do qual o calor e a escassez das águas tinha definhado; e ao contemplá-lo parecia mais sentir por ele, do que por si, a insuportável temperatura daquele ambiente.
João Semana era também proprietário rural, e portanto, apaixonado pela lavoura, conhecedor das leis de cultura, e experiente prognosticador do futuro das novidades agrícolas; por isso, examinando com profunda curiosidade o aspecto dos campos, cujos donos pela maior parte conhecia, quase chegara a esquecer-se de que um ardentíssimo sol lhe dardejava sobre a cabeça raios ameaçadores, tentando em vão exercer naquela robusta constituição a sua influência maligna.
A égua é que não se esquecia assim facilmente disso, e, cada vez mais rápida, procurava furtar-se a tão incômodo calor, e ao seu inevitável cortejo de moscas, que a traziam impacientemente, não obstante os folhudos ramos de carvalho, com os quais João Semana lhe enfeitara o pescoço.
Depois de cinco minutos mais de trote acelerado, tomou o pobre animal, com manifesta ansiedade e sem esperar sinal do cavaleiro, por uma rua estreita, que abrindo-se ao lado esquerdo da estrada, seguia, sob espesso toldo de verdura por entre duas quintas fronteiras.
Era um oásis, depois do deserto.
João Semana, porém, parecia tão indiferente ao vantajoso da mudança, como o fora à desagradabilíssima influência dos raios do sol, em campo descoberto.
Daí por diante começavam a ser mais freqüentes as habitações, e, ao barulho que fazia a égua sobre o terreno sólido e nas pedras soltas do caminho, assomava a cada janela uma cabeça. e João Semana recebia um cumprimento e um convite para jantar, a ambos os quais ele correspondia com benevolente familiaridade e às vezes com gracejos sempre bem recebidos e festejados.
Logo ao princípio, foi um velho, em mangas de camisa, e de cabeça já despovoada de cãs, que segurando uma enorme tigela de caldo de tronchuda e vagens coroado por uma pirâmide de boroa esmigalhada, apareceu à porta da cozinha, e disse com a boca meio ocupada por mantimentos, e sorrindo:
— É servido do meu jantar, Sr. João Semana? É pobre, sim, mas dado com a melhor vontade.
— Obrigado, tio José das Bicas, vou ver se lá em casa a Joana tem também o meu caldo em bom andamento.
— Então vá com a graça do Senhor, vá, que o calor não se sofre.
— Está picante, está. - E, andando sempre e falando, já com as costas voltadas, perguntou: - E como vão os seus milhos, Sr. José?
— Ora!... nem me fales nisso! A sequeira é muita.
— Veremos se para a lua nova haverá mudança de tempo.
— Deus o queira.
— Há de querer.
E prosseguiu no seu caminho.
Mais adiante, foi uma mulher idosa que espreitou do postigo de uma casa meia arruinada.
João Semana desta vez foi o primeiro a saudar.
— Bons dias, tia Rosa. Então como vai lá o seu velho? Fero e rijo, hein?
— Muito agradecida a V.S.ª. Está fraquinho ainda, e por isso...
— Pois que saia, que saia. É preciso também trabalhar para deitar foras as moléstias; nós não podemos fazer tudo. Que passeie, diga-lhe que passeie. O mais que lhe pode acontecer, é que dêem com ele as moças, mas disso não se morre.
— Já não está em idade para tanto, Sr. Doutor.
— Fie-se nele, fie-se nele; olhe que são os piores.
E, dando uma gargalhada, dobrou a esquina e tomou por outra rua.
Do interior de um pardieiro saiu-lhe ao encontro uma rapariga do povo, magra, remendada, e como rosto que denotava aflição.
— Muitos boas tardes, Sr. João Semana - disse a pobre rapariga com voz chorosa.
— Que temos lá, Maria? Alguma novidade?
— É que... dizia ela, hesitando e baixando os olhos.
— Fala; despacha-te, que vou com pressa.
— É que me esqueci do que me disse daquele remédio para minha mãe...
— Então onde diabos tinhas tu o juízo, galo doido? Ai que vocês andam-me com essas cabecinhas não sei por que terras, e eu que vos ature depois. Aposto que te lembras melhor do que te disse ontem o teu conversado?
— Ora, o Sr. João Semana tem coisas! É que não sei se o remédio era todo para uma vez, ou...
— É o que eu digo; é o que eu digo. estouvada! Cabeça no ar! Quantas vezes te repeti que era para três porções! Cuidas que eu não tenho mais que fazer, do que andar sempre a cantar a mesma cantiga por este mundo de Cristo? Ora vamos!
— E há de ser distantes da comida, que?...
— Que diabo aprendeste tu então de tudo o que eu te recomendei, fazes favor de me dizer? Pois não te expliquei, cabeça de bogalho, que era para dares meia hora depois das comidas? Que tinhas tu nos ouvidos?
— Muito agradecida, Sr. João Semana; e perdoe por as almas, mas... a gente tem tanta coisa na cabeça...
— Valha-te uma figa.
E quando a rapariga se ia já a retirar, ele acrescentou, mudando e tom:
— Olha cá, ó Maria, ouves?
A rapariga voltou-se. Levava os olhos vermelhos de chorar.
— Então que diabo é isso? Por que choras tu?
— Nada, Sr. João Semana: é cá de nossa vida.
— Quanto te levou o boticário pelo remédio?
— Seis vinténs.
— E... dize-me... E mataste hoje a galinha para tua mãe?
— Dei-lhe o resto de ontem.
— E para amanhã?
E a rapariga calava-se, embaraçada e triste.
João Semana tossiu para desimpedir a laringe de um pigarro importuno, e pôs-se a olhar atentamente para um troco de árvore que lhe ficava à direita, como se lhe achasse o que quer que fosse extravagante.
Durante esse tempo, mexia nos bolsos do colete e depois nas algibeiras das calças; em seguida, olhando em roda, como se receasse ser observado, curvou-se sobre o pescoço da égua e introduziu uma moeda de prata na mão da pobre rapariga, dizendo-lhe como modo rápido e desabrido:
— Toma lá. Olha agora se te pões por aí a dar à língua, como costumas. Aflige bem tua mãe, aflige!
A rapariga não teve uma só palavra com que lhe agradecer. Quis-lhe tomar as mãos para beijá-las; João Semana furtou-lhas rapidamente, dizendo-lhe com simulada aspereza:
— Larga, larga. Não me venhas cá com essas imposturas, que eu não sou para isso.
O melhor dos agradecimentos tinha-o ele nas lágrimas, que desciam pelas faces da pobre, na expressão de entranhado afeto, que lhe animava o olhar.
O velho cirurgião sabia compreender estas coisas, apesar das aparências de homem endurecido de que fazia ostentação.
Ao afastar-se do lugar da cena que descrevemos, dizia ele para si.
— Excelente vida! Lucrativa clínica! rendeu-me esta consulta, na verdade! Quem não há de fazer casa assim?
Estava o bom homem a fingir de interesseiro consigo mesmo!
Dentro em pouco tinha-se esquecido do que praticara.
Mais adiante, esperava um lavrador robusto, sentado na soleira da porta, a comer um fêvera de bacalhau. Assim que João Semana se aproximou levantou-se o homem e tirando o barrete:
— Nosso Senhor venha em sua companhia.
— Bons dias; então que há?
— Queria que vossemecê me dissesse se minha mulher pode comer uma sardinha assada.
— Pode, mas de caminho avisa o padre que a venha sacramentar.
— Credo! mas então...
— Adeus, minhas encomendas. A perguntas tolas não se dá respostas. Forte descoco!
E, sem mais palavras, estimulou o passo da égua.
O consultante sentou-se de novo, e voltando-se para dentro, disse:
— Ouviste-o? Ora aí tens.
Respondeu-lhe um suspiro.
Ainda não pararam aqui as consultas. Ao passar por uma azenha, o moleiro, vindo à porta, anunciou ao velho facultativo que a mulher não queria tomar remédio algum.
— Está no seu direito; - respondeu João Semana - e que queres que eu lhe faça?
— Mas, sendo precisos?
— Sabes que mais, Francisco? Eu, se me não casei, não foi para agora andar a aturar as impertinências das mulheres do meu próximo. Atura-a , atura-a, rapaz, que são ossos do ofício.
E continuou cavalgando, e deixou o moleiro embasbacado. Depois de se ter afastado, acrescentou, elevando a voz, mas sem se voltar para trás.
— Olha lá: sempre lhe vai dizendo que se amanhã não a encontrar melhor, prego-lhe um cáustico nas costas, que lhe dá de fazer ver estrelas ao meio dia. Ora anda.
Enfim, em um largo assombrado de castanheiros, foram duas crianças as que lhe interromperam a passagem; assim que o avistaram, ergueram-se do chão, onde estavam sentadas, tirando chapéu, e pondo-se a coçar na cabeça.
— Que temos nós, pequenada? - perguntou João Semana.
Um dos pequenos foi o relator da comissão.
— O nosso Luís está doente, e a mãe manda pedir ao Sr. Doutor para o ir ver.
— Está bem; lá irei de tarde; e como está tua mãe?
— A mãe diz que está melhor, mas ela chora tanto!
— Tens razão, Manuel, em duvidar da saúde do que chora. Pois eu verei isso. Vá; ide jantar e fazer rir vossa mãe, que é meia cura já.
Por tal forma ia sendo o bondoso João Semana cumprimentado, interrogado e consultado, e ele a responder a tudo com a máxima expedição possível, que já lhe não sofreiam delongas as reclamações imperiosas do estômago.
Chegou assim ao largo da igreja da freguesia, e atravessou-o por diante da residência do reitor. Deitou de soslaio os olhos para as janelas da casa paroquial, e, como as visse fechada, picou a égua, para ver se escapava sem vir à fala, e evitava novo empecilhos.
Não conseguiu, porém , o seu intento.
Uma das vidraças correu-se repentinamente e o reitor apareceu à janela, animado de sorrisos, e com um guardanapo na mão...
— Ó João Semana! Ó homem! Ó velhote! Pschiu! - bradava ele.
João Semana foi obrigado a voltar-se.
— Que é lá?
— Espera; fala à gente.
— Vou com pressa.
— Então andas por fora com um calor desses? Isso é criar malignas, homem.
— Que queres tu, abade? Meu pai caiu na patetice de me arranjar este modo de vida. Se lhe tivesse dado na mania fazer-me padre, outro galo me cantara.
— Cuidas então que não tenho canseiras.
— Aí, dão-te muito que fazer as tuas ovelhas; estou vendo.
—E não dão pouco.
— Só a cardá-las com as côngruas e derramas! Por isso estás magro. Para vos sustentar suamos nós outros.
O reitor sorria sem a menor sombra de ofensa.
— Vamos a saber: queres provar meu arroz?
— Eu? Já não tenho estômago criado para comidas de padres. Padre, abade e egresso de mais a mais! Safa! Morria de indigestão esta noite.
— Anda lá, anda lá; ainda não perdoaste aos frades. Morres impenitente.
— Como queres tu que eu lhes perdoe o terem gozado sem mim aquela santa vida de convento?
— Santa sim; porém sem mortificações, não.
— Oh! Decerto que não. Os melhores cozinheiros têm às vezes os seus descuidos, e os paladares de V.Rev.mas, lá de quando em quando, aturam o esturro no arroz, sal de mais na sopa, pimenta de menos no guisado, ou outra coisa assim, lá isso...
— Valha-te não sei que diga. A vida é para ti, homem, que, com oitenta, estás fero e robusto, e levas jeito de assistir ao nascimento do século vinte.
— É para veres que fêveras eu sou. Se tivesse a tua vida viveria como Noé. Mas tu estás a palanque e à fresca e eu aqui estatelado a dar-lhe trela. Adeus, meu amigo.
— Olha cá, espera, homem. Então nem um cálice do meu bastardo, hein? Olha que é do que tu gostas.
— Prefiro uma garrafa em minha casa.
— Lá franco no pedir és tu! Mas do que ninguém se gaba é de saber o gosto do teu moscatel.
— Querias talvez que eu te mandasse um presente de vinho? Era o que me faltava! Presentes de vinho! E a um frade!...
E dizendo isto, pôs-se a caminho, achando-se, dentro em pouco, a distância já considerável das residência.
De repente, como se lhe ocorresse uma lembrança cuja comunicação não podia sofrer demoras, voltou de novo atrás, e elevando a voz:
— Ó abade, tu não sabes a história daquele frade franciscano que?...
— Não sei, não; ora conta lá, João Semana, conta - disse o reitor, debruçando-se no peitoril da janela, e já com aspecto risonho.
— Havia lá no convento - principiou João Semana - uma pintura muito grande representando a ceia de Cristo; e era pintura a que mais atraía as meditações piedosas do tal reverendo, o qual, de olhos fitos naquele quadro, passava horas e horas esquecido de tudo o mais. Outro farde, que tinha notado isto, não pôde ter mão em si que lhe não perguntasse com aquela voz de lamúria de franciscano manhoso: "Em que pensais vós, irmão, quando com tanta atenção olhais para este quadro?" "Nos tormentos que por nós padeceu o Salvador" - respondeu o tal. "E longos foram na verdade!" - continuou o primeiro. "Mas por que esta pintura mais do que as outras, vos traz tão santas idéias? Não tendes na sacristia a do Descimento da Cruz e aquela do Senhor preso à coluna?" "É verdade, irmão,! - diz-lhe então o franciscano com cara de mortificação - "é verdade, mas olhai que não menor tormento era este de ter doze pessoas à mesa, e tão pouco de comer em cima dela".
E João Semana, dizendo isto, roçou as esporas pela barriga da égua, e partiu, acompanhado de uma grande gargalhada do reitor, que era perdido por as anedotas de João Semana.
— Onde diabo vai este homem buscar estas coisas? - dizia o reitor chorando de tanto que se riu.
E João Semana ia quase a dobrar a esquina quando de novo o suspendeu a voz do padre, bradando-lhe:
— Ó João Semana, olha lá.
— Que é? - respondeu o facultativo, já com certo mau humor - Tu queres que eu fique hoje sem jantar?
— É só uma pergunta.
— Dize.
— Não sabes que chegou ontem o Danielzinho do Dornas?
— Como não sei? Pois não estive eu já com ele?
— Ah, sim? E então que te perece o homem?
— Que me há de parecer? Bem. - e depois acrescentou: - Bem e mal.
— Como é isso? Bem e mal?
— Sim , o rapaz é talentoso, e nas cidades talvez fizesse figura; para aqui não serve.
— Ah! João Semana!... Ciúmes...
— Estás doido? Tomara eu que ele me descarregasse de parte desta tarefa, mas... dize-me lá tu se aquele corpo franzino, aquela pele de mulher pode aturar metade, a quarta parte, a décima parte do que eu tenho aturado.
— Lá isso.
E dizendo isto, sempre conseguiu dobrar a esquina.
O reitor fechou a janela e foi jantar. Sentado à mesa ainda sorria de quando em quando, repetindo à meia voz:
— Doze pessoas à mesa, e tão pouco de comer em cima dela! Ora o diabo do homem...
Joaquim Guilherme Gomes Coelho, de pesudónimo Júlio Dinis, nasceu no Porto a 14 de novembro de 1839 e faleceu, tuberculoso, em 12 de setembro de 1871
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