Ao longo de uma ribeira
eu passeava sozinho;
e um pássaro ouvi cantando
sobre um ramo, ao pé do ninho.
A esposa guardava os filhos
co' as asas agasalhados;
todo o vale era em silêncio;
e eles ambos sem cuidados.
De sua vida amorosa
concebi toda a doçura;
e achei-me sozinho à beira
da corrente que murmura.
Afastei-me tristemente;
e um zéfiro de passagem
que trouxe um cheiro de flores
dentre a próxima folhagem
E eu disse-lhe: "Este hálito doce
do seio dos esposos vem;
mais de uma florinha virgem
agora se torna mãe".
Vi que estava solitário;
e deste aroma o prazer
junto à beira da corrente
mais me veio entristecer.
0 sol ia quase a pôr-se;
e a frouxa luz que espargia,
as águas, e o campo, e o bosque,
tudo em púrpura tingia.
Ao longe, ouvia as pastoras,
que os seus rebanhos levavam;
eles bailavam contentes,
elas de amores cantavam.
O sol se escondeu de todo;
e da aldeia sobre a ermida,
ao longe, o sino saudoso
deu ao dia a despedida.
Os campos ficaram tristes:
só, de momento em momento,
se ouvia um cão em distância,
ou brando agitar-se o vento.
E eu me achei só assentado
ao pé d'água que fugia;
e os sons da tarde em minh' alma
dobraram melancolia.
Já tinha nascido a lua
no céu formoso de estrelas;
quando boiava água abaixo
barco sem rumo nem velas.
E o barqueiro ia cantando
não sei que saudosas mágoas...
assentado sobre a popa,
debruçado sobre as águas;
e quando ele interrompia
seu cantar, e assobiava,
mulher, que vinha com ele,
em voz mui doce cantava.
A noite, as auras, a lua,
rouxinóis a gorjear,
me inspiraram sentimentos
que não tive a quem narrar.
Então co'o pranto nos olhos,
no coração a tristeza,
"Que faz a flor no deserto?
perguntei à natureza,
que faz um astro brilhando
em país desabitado?
que presta um cabeço fértil
no meio do mar salgado?
Porque me fazes num vago,
inútil fogo abrasar,
se não acho neste mundo
uma só que eu deva amar?"
E eu voei co' o pensamento,
qual relâmpago ligeiro,
aos muros silenciosos
de solitário mosteiro.
Melancólico e silvestre
era todo esse lugar:
de um lado, montanhas ermas;
do outro, pinhais, e o mar!
E eu entrei ao mesmo tempo
no fundo do santuário;
das campas o surdo estrondo
movi com pé temerário!
Por toda a parte achei noite,
e o silêncio mais profundo:
nenhuma voz! nenhum passo!
nenhum dos filhos do mundo!
Só do mocho sobre o tecto
o triste piar se ouvia,
que pela abóbada extensa
se alongava, e se perdia.
Logo o relógio da torre
meia-noite fez ouvir;
do templo os ecos acordam,
e tornam logo a dormir.
Depois um sino, tocado
por forte, invisível mão,
chamou, triste, os pensamentos
para a nocturna oração.
Do coro, até 'li deserto,
foram cheios os lugares;
no ar, até 'li calado,
reinaram ternos cantares.
A hora, o lugar, as trevas,
e aquelas vozes suaves,
reuniram na minh' alma
à ternura ideias graves.
Ao tronco de uma coluna
pensativo me encostei
Muito mais triste que dantes,
e muito mais só me achei.
Emudeceu todo o coro;
eis as luzes se retiram;
bateu a porta ao fechar-se;
as santas irmãs saíram.
Da lâmpada veladora
o lume, já quase extinto,
de mil trémulos fantasmas
encheu do templo o recinto.
Logo o relógio da torre
umas hora fez ouvir;
do templo os ecos acvordam,
e tornam logo a dormir.
Afastei-me horrorizado,
e veloz nesse momento
ao dormitório tranquilo
me arrojei co' o pensamento.
Mão na face, e olhos na lua,
vi, dentro de escura cela,
chorosa virgem, sentada
às grades de alta janela.
Conheci por seus cabelos,
e seus trajes seculares,
que não era das votadas
eternamente aos altares.
Conheci que um pensamento
nutria triste e profundo;
e eu disse: "Qual eu me vejo,
se vê sozinha no mundo!"
E todos quantos afectos
sua alma encerrados tinha,
num profético delírio
foram presentes à minha.
Apertei-lhe a mão com força,
e chegando ao coração:
"Ambos achámos" - lhe disse -
"o que buscámos em vão".
"Por este céu me protesta,
que eu juro por este céu,
tu, ser minha eternamente;
eu, ser para sempre teu."
O céu ouviu nossos votos;
viu-nos a lua abraçar
e ambos juntos, assentados,
ficamos a conversar.
Logo o relógio da torre
duas horas fez ouvir;
os ecos de novo acordam,
e tornam logo a dormir.
Mas esta virgem, quem era?
Porque entrou na solidão?
Donde o seu ar pensativo?
Donde a interna agitação?
Alta noite!... ela sozinha!...
porque razão não tremeu?
ao mortal desconhecido
como súbito se deu!
Onde existe esse mosteiro,
esse encantado lugar?
De um lado, montanhas ermas!
Do outro, pinhais, e o mar!
Homens, deixai meu segredo;
Baste saber que eu sou dela,
seja onde for seu retiro,
seja quem for esta Bela.
Mulheres, este fantasma
vos excede nos encantos.
Serão dele eternamente
o meu amor e os meus cantos.
Extraído de "Poemas Portugueses Antologia da Poesia Portuguesa do Séc. XIII ao Séc. XXI. Selecção, organização, introdução e notas de Jorge Reis Sá e Rui Lage- Prefácio de Vasco Graça Moura. Porto Editora".
António Feliciano de Castilho, primeiro visconde de Castilho (n. Lisboa, 28 de Janeiro de 1800 — m. Lisboa, 18 de Junho de 1875)
Ler do mesmo autor neste blog Convite para a Felicidade; A Ermitagem da Montanha
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