1.
nem gatos a miar
nem a sola dos sapatos a medir a calçada
nem o tilintar dos guizos ao pescoço das ovelhas
nem sequer a coxa de repente revelada
mas logo encoberta como um fim da tarde
apenas
o pequeno jardim com pedaços de quintal rebentando nos intervalos do cimento
vasos enevoados como um domingo de trovoada
e
o ruído
que através dos ramos do limoeiro e da tangerineira
nos acompanha como um alfabeto
quase vento quase onda sem espuma nem fotografia
2.
muito para além do espaço
o jardim reserva entre suas páginas e lembrança da botânica
dos silêncios
três ou quatro fragmentos de um olhar
hortaliças amarelecidas antes do tempo
a distância entre a memória do vinho e o cheiro das romãs
o ritmo das colheitas gravado nos
troncos e nos canteiros apertados
a imagem da mão acariciando a polpa dos frutos
3.
lá dentro depois do portão fechado
tudo lembra a imprevista pontuação dos astros
cada
minuto
vale apenas como instrumento
secreta passagem para outros nomes
uma maçã comida pela madrugada
o ponteiro do relógio esperando encontrar nas cores
o fumo e as formas da natureza
4.
entre os ramos apenas a paisagem se prolonga
como se ninguém visse
tudo ou quase tudo vai guardando a identidade das coisas
geometria que sob as lâmpadas e o passar dos autocarros
vai desenhando a luminosidade
dos horizontes
de Arquitectura do Silêncio
in Anos 90 e Agora, uma antologia da poesia portuguesa, selecção e organização de Jorge Reis-Sá, edições quasi
Ruy Ventura nasceu em Portalegre a 27 de Dezembro de 1973
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