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2008-03-27
Nocturno dos Anjos - Xavier Villaurrutia
Dir-se-ia que as ruas fluem serenas na noite.
As luzes não são nítidas que ajudem a revelar o segredo,
o segredo dos homens que passeiam, conhecem,
porque estão todos imersos no segredo
não ganhariam nada em fragmentá-lo
sim, é bom guardá-lo
e dividi-lo só com a pessoa eleita.
Se cada um falasse uma vez só,
e com uma só palavra, aquilo que pensa,
as letras do desejo moldariam uma grande cicatriz cintilante,
uma constelação antiga, mais viva ainda que as outras.
Seria uma constelação ardente como o sexo
no corpo profundo da noite,
ou como os gémeos que pela primeira vez na vida
se olham de frente, e se abraçam para sempre.
A rua enche-se com um rio de seres ávidos,
caminham, aguardam, prosseguem.
Trocam olhares, ensaiam sorrisos,
formam pares imprevisíveis...
Há esquinas e bancos sombrios,
auras indistintas, formas profundas,
e súbitos vãos com uma luz que cega
e portas que cedem à mais leve pressão.
A rua fica deserta num instante.
Parece afugentar de si mesmo
o desejo de começar de novo.
Está paralisado, mudo, ofegante
como o coração entre dois espasmos.
Mas uma nova pulsação
lança ao rio da rua outros seres sedentos.
Cruzam-se, e sobem,
voam ao rés do chão,
nadam de forma milagrosa
e ninguém se atreveria a dizer que não caminham.
São anjos,
desceram à terra
através de degraus invisíveis.
Vieram do mar, o espelho do céu,
em barcos de fumo e sombra,
a fundir-se e confundir-se com os mortais,
a inclinar os seus rostos entre as coxas das mulheres,
a deixar que outras mãos apapalpem febrilmente os seus corpos,
e que outros corpos procurem os seus até encontrá-los
como os lábios que se fecham,
a fatigar a boca tanto tempo estagnada,
a libertar as suas línguas de fogo,
a dizer juramentos, canções, e palavras porcas
com que os homens concentram o antigo mistério
da carne, do sangue, e do desejo.
Têm nomes fictícios, sinceramente divinos.
Chamam-se Dick ou John, Marvin ou Louis.
Em nada, senão na beleza, se distinguem dos mortais.
Passeiam, aguardam, e seguem.
Trocam olhares, ensaiam sorrisos,
formam pares imprevisíveis.
Sorriem astuciosos ao entrar nos elevadores dos hotéis
donde ainda praticam um voo lento e vertical.
Em seus copos nus há vestígios celestiais,
signos, estrelas, e letras azuis.
Deixam-se cair nas camas, e afundam-se nas almofadas
que os fazem pensar um momento nas nuvens.
Mas logo fecham os olhos para se entregar aos gozos da sua misteriosa encarnação,
e quando dormem não sonham com os anjos, mas com os mortais.
Trad. Jorge Henrique Barros, in Rosa do Mundo 2001 Poemas para o futuro
Xavier Villaurrutia ( nasceu em 27 Mar 1903, na Cidade do México, e faleceu em 1950).
Ler a Versão original: Nocturno de los ángeles
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