Rio Tâmega
Minha santa janela, onde eu medito
E digo adeus ao sol e falo ao vento...
E saúdo a aurora e leio no Infinito
E sinto, às vezes, um deslumbramento!
Vejo, de ti, a Serra e aquele val',
Onde aparece a imagem indecisa
Dum rio de águas mortas, espectral,
Que, entre sombrias árvores, desliza.
E vejo erguer-se o rio cristalino,
Transfigurado em sonho ou nevoeiro...
E faz-se eterno espírito divino
Aquele corpo de água prisioneiro.
Ó láctea emanação! Ó névoa densa!
Ó água aberta em asa! Ó água escura!
Água dos fundos pegos, no ar, suspensa,
Vestida, como um Anjo, de brancura!
Água gélida e negra, que te elevas,
Qual fantasma, no Azul, que desfalece!
Ó claro e heróico sol, que vence as trevas,
Porque será que, ao ver-te, empalidece?
Ó água d'além túmulo! Água morta!
Ó água do Outro Mundo! Aparições
De neblina, entre as trevas... Absorta
Paisagem povoada de visões...
E enchendo todo o espaço de esplendores,
De desmaios, de síncopes e mágoas,
Diluindo tudo em místicos alvores,
Ergue-se a sombra lívida das águas...
Quantas vezes, de ti, boa janela,
Eu lhe falo e a interrogo... E, com certeza,
A tua sombra, ó água, é irmã daquela
Que anda em meu coração, e é só tristeza...
Ei-la a pairar na humana solidão
Infinita da noite, quando as cousas
São quimérica e estranha emanação
De silêncios e névoas misteriosas...
Ei-la que paira, ouvindo a voz da lua,
E a voz louca do vento e as ansiedades
Das sombras, que, na terra branca e nua,
Parecem desenhar profundidades...
Ei-la a pairar nas trevas que em nós deixam.
Nas almas e nas pedras da lareira,
Os olhos lacrimosos que se fecham
E dão, em vez de luz, cinza e poeira...
Bem mais do que neste ar, que se respira,
Pairas na minha alma... E com teus dedos
De penumbra, arrebatas minha lira,
Ó Tâmega de sonhos e segredos!
E vais compondo versos de neblina
às árvores do monte, à dura frágua...
Elegias de orvalho à luz divina,
Endeixas de remanso e cantos de água...
E sobes, a voar... E, num sombrio
Gesto de asa, percorres as Alturas!
E molhas minha fronte, aéreo rio;
E, através dela, sonhas e murmuras...
Ó bendita janela, entre aas janelas,
Onde fala comigo a luz do luar,
E a claridade viva das estrelas
Que traz, e sangue, os pés de tanto andar!
Bendita sejas tu, ó sempre aberta
Sobre o meu coração e estes outeiros,
E esta noite fantástica e coberta
De espectros, de visões e nevoeiros!
Teixeira de Pascoaes (Joaquim Pereira Teixeira de Vasconcelos), (n. Amarante, 2 de Nov. de 1877 – m. 14 de Dez. de 1952)
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