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2016-07-31

Balada da Neve - Augusto Gil



Batem leve, levemente,
como quem chama por mim.
Será chuva? Será gente?
Gente não é, certamente
e a chuva não bate assim.

É talvez a ventania:
mas há pouco, há poucochinho,
nem uma agulha bulia
na quieta melancolia
dos pinheiros do caminho...

Quem bate, assim, levemente,
com tão estranha leveza,
que mal se ouve, mal se sente?
Não é chuva, nem é gente,
nem é vento com certeza.

Fui ver. A neve caía
do azul cinzento do céu,
branca e leve, branca e fria...
- Há quanto tempo a não via!
E que saudades, Deus meu!

Olho-a através da vidraça.
Pôs tudo da cor do linho.
Passa gente e, quando passa,
os passos imprime e traça
na brancura do caminho.

Fico olhando esses sinais
da pobre gente que avança,
e noto, por entre os mais,
os traços miniaturais
duns pezitos de criança...

E descalcinhos, doridos...
a neve deixa inda vê-los,
primeiro, bem definidos,
depois, em sulcos compridos,
porque não podia erguê-los!...

Que quem já é pecador
sofra tormentos, enfim!
Mas as crianças, Senhor,
porque lhes dais tanta dor?!...
Porque padecem assim?!...

E uma infinita tristeza,
uma funda turbação
entra em mim, fica em mim presa.
Cai neve na Natureza
- e cai no meu coração.

Augusto César Ferreira Gil (n. em Lordelo do Ouro, Porto a 31 de julho de 1873 e faleceu em Lisboa a 26 de fevereiro de 1929

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2016-07-30

Dizem os Sábios - Ângelo de Lima


Dizem os sábios que já nada ignoram
Que alma, é um mito!...
Eles que há muito, em vão, dos céus exploram
O almo infinito...
Eles, que nunca achavam no ente humano
Mais que esta face
De ser finito, orgânico, o gusano
Que morre e nasce,
Fundam-se na razão.
E a razão erra!...

Quem da lagarta a rastejar na terra
Pode supor,
Sonhar sequer, que um dia há-de nascer
A borboleta, aquela alada flor
Matiz dos céus?
Sábios, achai em vão o pode ser
Saber... só Deus.

O homem rasteja, semelhante ao verme
Por que não há-de a paz da sepultura
- Quanto labor sob a aparente calma!
Servir d'abrigo àquele ser inerme,
De que há-de um dia após tarefa oscura
Surgir vivaz, alada e flor, a Alma.

Ângelo de Lima (nasceu no Porto a 30 de julho de 1872; m. Lisboa, no Hospital de Rilhafoles, em 14 de agosto de 1921)

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2016-07-29

TRIBUNAL - Carlos Alberto Lopes Corrêa


não somos. estamos
à semelhança divinizante
acumulando julgamentos
todos falíveis
neste antro de réus

mútuas e recíprocas
ameaças: o que vivemos
sob códigos variados
todos volúveis
no remoinho
das verdades e mentiras
donde o mar absoluto
apenas absorve o restante
eco triturado
de muitos embates
permitindo que subsista
vaga música
- ceciliana partitura –
no tribunal sub judice

in Língua bifurkysta: 13 poemas (e um enigma), GEEC Publicações, Divinipólis, 2010
Poema extraído daqui

CARLOS ALBERTO LOPES CORRÊA nasceu em 29 de julho de 1961, em Divinópolis, Minas Gerais, Brasil

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2016-07-28

Amanhã - Sidónio Muralha


Na hora que vem de longe,
cresce e vem, cresce e vem,
– os que tiverem frio hão-de lançar os meus versos ao lume,
e a chama há-de subir…
– os que tiverem fome hão-de lançar os meus versos à terra,
como se fossem estrume,
e a terra há-de florir…
Os meus poemas de tragédia são degraus
da hora que vem,
– cresce e vem,
– cresce e vem… –
Nos meus poemas cresceu, e sofreu, e aprendeu
nos meus poemas revoltos,
por isso vem de longe, nua, nua,
e traz os cabelos soltos…
Hora que vens de longe,
de longe vens, de rua em rua:
– hás-de passar e hás-de parar por toda a parte,
nua, formosamente, nua,
– para que já não possam desnudar-te

Sidónio Muralha (n. Lisboa a 28 de julho de 1920 - m. Curitiba, Paraná, Brasil a 8 de dezembro de 1982)

Ler do mesmo autor, neste blog:
Soneto Imperfeito da Caminhada Perfeita
Os olhos das crianças
Romance
Soneto da Infância Breve
Dois Poemas da Praia da Areia Branca
Poemas de Sidónio Muralha


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2016-07-27

TODO RISCO - Damário Dacruz


Damário Dacruz (27 de julho de 1953, Salvador, Bahia, Brasil- 21 de maio de 2010, Salvador, Bahia, Brasil)

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Canção de Bodas - Lope de Vega

Amendoeira em flor (foto daqui)

Que te felicitem
o maio garrido,
os alegres campos,
as fontes, os rios.
Ergam as cabeças
amieiros finos,
e com novos frutos
amendoeiras lindas.
Lancem as manhãs,
depois do rocio,
em espadas verdes
guarnição de lírios.
Subam os rebanhos
pelo monte acima
que a neve cobriu,
a pastar tomilhos

Trad. José Bento in Rosa do Mundo, 2001 Poemas para o Futuro, Assírio & Alvim


Félix Lope de Vega, também citado como Félix Lope de Vega Carpio ou Lope Félix de Vega Carpio, naceu a 25 de novembro de 1562 em Madrid; faleceu a 27 de agosto de 1635 em Madrid.

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2016-07-26

Epitáfio - Rui Augusto

Se eu abandonar
a morada
do meu coração
e morto permanecer
aquém das montanhas...
Nas sombras do eclipse
que descer cerrado
sobre mim
enterrem-me
oh! por favor enterrem-me
bem fundo.
E como epitáfio
à luz de dias conquistadores
sobre a minha memória
rasguem a ferida da piedade
para que sangre.

Excerto do poema “Epitáfio”, in “Colar de maldições”

Rui Augusto Ribeiro da Costa nasceu a 26 de julho de 1958, em Camabatela, Cuanza Norte, Angola.

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2016-07-25

Nesta cova onde se vaza - João Teixeira de Medeiros

Nesta cova onde se vaza
Minha estória até ao fim,
Uma simples pedra rasa
Tanto basta para mim.

O peso já não me assusta,
Já me não inspira medo;
Depois de morto não custa
Uma areia ou um penedo.

Aqui nesta cova jaz
O filho dum português;
O nome ficou atrás,
O corpo foi-se de vez.

Aqui nesta cova jaz
Um velho l(usa)landês
Nesta mesma se desfaz
Quanto foi e quanto fez.

Do Tempo e de Mim, João Teixeira de Medeiros
Seleção, organização e prefácio de Onésimo Teotónio Almeida.
Gávea-Brown, Providence, Rhode Island, 1982

João Teixeira de Medeiros nasceu em Fall River, Massachusetts, em 16 de novembro de 1901, f. em 25 de julho de 1995

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2016-07-22

Lisboa: aventuras - José Paulo Paes (na passagem do 90º aniversário)

tomei um expresso
                    cheguei de foguete
subi num bonde
                    desci de um elétrico
pedi cafezinho
                    serviram-me uma bica
quis comprar meias
                    só vendiam peúgas
fui dar à descarga
                    disparei um autoclismo
gritei "ó cara!"
                     responderam-me "ó pá!"

                     positivamente
as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá

José Paulo Paes (nasceu em Taquaritinga - SP, em 22 de julho de 1926; faleceu em 9 de outubro de 1998 em São Paulo, SP)

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2016-07-21

Jean / Joaninha - Robert Burns

Flores - imagem daqui

OF a' the airts the wind can blaw,
I dearly like the west,
For there the bonnie lassie lives,
The lassie I lo'e best:
There wild woods grow, and rivers row,
And monie a hill between;
But day and night may fancy's flight
Is ever wi' my Jean.

I see her in the dewy flowers,
I see her sweet and fair:
I hear her in the tunefu' birds,
I hear her charm the air:
There's not a bonnie flower that springs
By fountain, shaw, or green;
There's not a bonnie bird that sings,
But minds me o' my Jean.


Em Português

Anda alegria no vento
sempre que vem do sol-pôr:
lá donde vive a serrana
que me enfeitiçou d’amor...
Lá nos montes, pelas fontes,
pelos pinhais, vai sozinha…
A cada momento, o vento
me faz lembrar - Joaninha!

Vejo-as nas florinhas tenras,
que dá graça de as olhar;
ouça-a no trilo das aves
que põe bruxedo no ar:
a papoila que floresce
por entre a messe, ou na vinha,
o rouxinol que gorjeia,
só me dizem - Joaninha!

trad. Luís Cardim - in Rosa do Mundo 2001 Poemas para o Futuro, Assírio & Alvim

Robert Burns (b. Alloway, Ayrshire, Scotland, 25 Jan. 1759; d. Dumfries, Scotland 21 Jul 1796).

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2016-07-20

NOITE - Gastão Cruz

Ah! que le monde est grand à la clarté des lamps!


Na solidão da noite releio Baudelaire
A luz mortal desfez-se há muito nas cidades
Ah como grande é o mundo à luz ideal das lâmpadas
nos mapas irreais dos desejos amargos

Do dia já passou o cortejo dos cegos
Os seus olhos colheram da cal viva os excessos
Ninguém mais reconhece os lugares gloriosos
onde a luz imortal solta os leões do sol

Por detrás desses olhos numa câmara fria
como uma grande cobra a morte dorme e espera
Tem o corpo do mundo deitado entre os anéis
para o mostrar inerte à luz do dia.

(As Leis do Caos, 1990)

Gastão Santana Franco da Cruz (nasceu em Faro, 20 de julho de 1941)

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2016-07-19

Lúbrica - Cesário Verde (na passagem do 130º aniversário do seu desaparecimento, com extrato de Bernardo Soares em que alude ao poeta)

«Às vezes, quando ergo a cabeça estonteada dos livros em que escrevo as contas alheias e a ausência de vida própria, sinto uma náusea física, que pode ser de me curvar, mas que transcende os números e a desilusão. A vida desgosta-me como um remédio inútil. E é então que eu sinto com visões claras como seria fácil o afastamento deste tédio se eu tivesse a simples força de o querer deveras afastar.

Vivemos pela acção, isto é, pela vontade. Aos que não sabemos querer — sejamos génios ou mendigos — irmana-nos a impotência. De que me serve citar-me génio se resulto ajudante de guarda-livros? Quando Cesário Verde fez dizer ao médico que era, não o Sr. Verde empregado no comércio, mas o poeta Cesário Verde, usou de um daqueles verbalismos do orgulho inútil que suam o cheiro da vaidade. O que ele foi sempre, coitado, foi o Sr. Verde empregado no comércio. O poeta nasceu depois de ele morrer, porque foi depois de ele morrer que nasceu a apreciação do poeta.

Agir, eis a inteligência verdadeira. Serei o que quiser. Mas tenho que querer o que for. O êxito está em ter êxito, e não em ter condições de êxito. Condições de palácio tem qualquer terra larga, mas onde estará o palácio se o não fizerem ali?»

Bernardo Soares, Livro do Desassossego

Mandaste-me dizer,
No teu bilhete ardente,
Que hás-de por mim morrer,
Morrer muito contente.

Lançaste no papel
As mais lascivas frases;
A carta era um painel
De cenas de rapazes!

Ó cálida mulher,
Teus dedos delicados
Traçaram do prazer
Os quadros depravados!

Contudo, um teu olhar
É muito mais fogoso,
Que a febre epistolar
Do teu bilhete ansioso:

Do teu rostinho oval
Os olhos tão nefandos
Traduzem menos mal
Os vícios execrandos.

Teus olhos sensuais
Libidinosa Marta,
Teus olhos dizem mais
Que a tua própria carta.

As grandes comoções
Tu, neles, sempre espelhas;
São lúbricas paixões
As vívidas centelhas...

Teus olhos imorais,
Mulher, que me dissecas,
Teus olhos dizem mais,
Que muitas bibliotecas!

Extraído de O Livro de Cesário Verde, Texto integral e estudo da obra
Estante Editora

José Joaquim Cesário Verde (n. em Lisboa a 25 de fevereiro de 1855, m. Lisboa, 19 de julho de 1886)

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2016-07-18

Epitáfio - Tristán Corbière

Matou-se de paixão ou morreu de preguiça,
Se vive, é só de vício; e deixa apenas isso:
- Não ser a sua amante foi seu maior suplício -

Não nasceu por nenhum lado
E foi criado como mudo,
Tornou-se um arlequim-guisado,
Mistura adúltera de tudo.

Tinha um não-sei-que, - sem saber onde;
Ouro, - sem trocado para o bonde;
Nervos, - sem nervo; vigor sem "garra";
Alma, - faltava uma guitarra;
Amor, - mas sem bastante fome.
- Muitos nomes para ter um nome. -

Idealista, - sem idéia. Rima
Rica, - sem matéria-prima;
De volta, - sem nunca ter ido;
Se achando sempre perdido.

Poeta, apesar do verso;
Artista sem arte, - ao inverso;
Filósofo - vide-verso.

Um sério cômico, - sem sal.
Ator: não soube seu papel;
Pintor: do-ré-mi-fá-sol;
E músico: usava o pincel.

Uma cabeça! - sim, de vento;
Muito louco para ter tento;
Seu mal foi singular de mais.
- Seus pés quebrados, pés demais.

Avis rara - mas de rapina;
Macho... com manha feminina;
Capaz de tudo, - bom pra nada;
Com certeza, - por certo errada.

Pródigo como o filho errante
Do Testamento, - herança vacante.
Rebelde, - e com receio do lugar
Comum não saía do lugar.

Colorista sem cavalete;
Imcompreendido... - abriu o peito:
Chorou, cantou em falsete;
- E foi um defeito perfeito.

Não foi alguém, nem foi ninguém.
Seu natural era o ar bem
Posto, em pose para a posteridade;
Cínico, na maior ingenuidade;
Impostor, sem cobrar imposto.
- Seu gosto estava no desgosto.

Ninguém foi mais igual, mais gêmeo
Irmão siamês de si mesmo.
Viu-se a si próprio ao microscópio:
Micróbio de seu próprio ópio.
Viajante de rotas perdidas,
S.O.S. sem salva-vidas...

Muito cheio de si para aturar-se,
Cabeça "alta", espírito ativo,
Findou, sem saber findar-se,
Ou vivo-morto ou morto-vivo.

Aqui jaz, coração sem cor, desacordado
Um bem logrado malogrado.

Trad. de Augusto de Campos

Tristan Corbière, chamado Édouard-Joachim Corbière (Coat-Congar de Comuna francesa, Morlaix (Finisterre), 18 de julho de 1845 - 01 março de 1875)


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2016-07-15

Soneto da Defunta Formosa - Alphonsus de Guimaraens

foto: Lírios by Luís Rodrigo

Temos saudade, pálida formosa,
De tudo quanto o pôr-do-sol fenece:
Ou seja o som final de extrema prece,
Ou seja o último anseio de uma rosa...

E mais ligeiramente a gente esquece
Uma hora que a alma de carinhos goza,
Que de ter visto, em roxa luz saudosa,
Uma imperial tulipa que adoece...

Um lírio doente no caulim de um vaso
Faz-nos lembrar um luar em pleno ocaso
Morrendo ao som das últimas trindades...

E nem eu sei, amor, por que perguntas,
Tu que és a mais formosa das defuntas,
Se eu de ti hei de ter loucas saudades.

Alphonsus de Guimaraens [Afonso Henriques da Costa Guimarães] (n. em Ouro Preto, Minas Gerais, a 24 de julho de 1870; m. Mariana, Minas Gerais a 15 de julho de 1921)

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2016-07-14

ODE À GRAÇA - António Quadros

A sete amigos


Na hora cinzenta da descrença,
no fundo da negação,
no tempo hostil da desarmonia,
eu canto a graça,
Senhor,
canto a graça invocada,
canto a graça inesperada,
canto a graça quotidiana
e canto a graça invulgar
que oferece à alma desgarrada
um novo ar para respirar.

Conheço bem a luta da existência,
a feira das vaidades,
a guerra dos poderes.
Conheço a realidade hostil e desgastante
dos corações humilhados a vingarem-se
das ambições em liberdade a descerem sem cessar
para o que julgam o mais nobre e o mais alto.
Conheço o desprezo e o despeito,
conheço da injustiça o travo
e da escravidão o temor e o tremor.
Conheço a doença e a morte,
conheço a saudade e a angústia,
conheço também a revolta
que nos leva raivosamente pelas ruas,
altas horas da noite planeando desforras.
Sei o que é ver na beleza fealdade
e troçar de valores e ideais.
Sei olhar o bem
vendo o mal,
sei fugir,
sei odiar,
sei o que é viver em desacor
ferido e ferino,
turbilhão de sentimentos recalcados
num universo hostil e perigoso.
Mas nesta hora cinzenta,
Senhor,
na hora do mal,
na hora da desarmonia,
eu canto a graça,
canto a graça invocada,
canto a graça inesperada,
canto a graça quotidiana
e canto a graça invulgar
que oferece à alma desgarrada
um novo ar para respirar.
Que volta de maravilha,
quando a nossa alma,
ferida,
tudo aceita como prova,
e se encontra por encanto
numa realidade nova
numa vida transcendida
em que a história
é providência,
em que a memória
é vivência
de fantástica aventura,
de ciladas,
de embuscadas,
de traições,
de prisões,
de um jogo prodigioso
de exacto significado.
Que volta de maravilha,
quando a paisagem, radiosa, se colora,
quando o sol brilha sobre as águas turvas,
quando, solitários, alguém nos faz companhia
e a nossa alma, confortada, enlevada,
se dá toda aos homens e ao universo.
Que volta de maravilha,
Senhor,
o beijo da amada,
o despertar do filho,
a árvore plantada
e a obra por nossas mãos conseguida.
O ritmo do ser
faz-se nosso
e o coração, batendo-nos no peito
respira como Deus a criação.
Que volta de maravilha,
quando os fumos se dissipam,
quando as dúvidas se desfazem,
quando todos os elementos em conflito
se integram no mesmo movimento
e quando, atónitos,
reconhecemos o fim e o princípio,
a luz que separa as sombras,
a razão universal e misteriosa
de que todo o mundo, inteiro e vário,
é indício,
é cifra,
é sinal
que o mal
não nos deixava ler.
Protagonista encoberta,
companheira generosa e disponível,
invisível promessa que mil vezes
nos estende a sua mão aberta
a graça segue-nos sempre,
atena,
próxima,
dentro e fora de nós,
ao alcance da voz
e do silêncio.
Mas nós, desatentos,
a esquecemos, e por isso,
na hora cinzenta da descrença,
no fundo da negação
no tempo hostil da desarmonia,
eu canto a tua graça,
Senhor,
eu canto a graça invocada,
eu canto a graça inesperada,
eu canto,
eu canto a graça.

in Imitação do Homem, Espiral, Lisboa, 1966, pp. 70-73

António Gabriel de Quadros Ferro (n. Lisboa, 14 de julho de 1923 — f. Lisboa, 21 de março de 1993)

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2016-07-13

Estação - Wole Soyinka


Ferrugem é amadurecimento, ferrugem
E a murcha barba de milho;
O pólen é tempo de acasalamento quando andorinhas
Tecem uma dança
De setas emplumadas,

Fiam pés de milho em manchas
Aladas de luz. E gostámos de ouvir
A teia de frases do vento, de ouvir
Rangidos nos campos, onde folhas de milho
Cortam como lascas de bambu.

Agora enchemos o celeiro,
Esperando ferrugem nos pendões, traçamos
Longas sombras desde o crepúsculo, entregamos
Colmo seco em fumo de lenha — esperamos
A promessa da ferrugem.

Trad. José Alberto Oliveira

in Rosa do Mundo, 2001 Poemas para o Futuro, Assírio & Alvim

Wole Soyinka nasceu em Abeokuta, Nigéria, em 13 de julho de 1934

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2016-07-12

Peço Silêncio / Pido Silencio - Pablo Neruda


Agora, me deixem tranquilo.
Agora, se acostumem sem mim.

Eu vou cerrar os meus olhos.

Somente quero cinco coisas,
cinco raízes preferidas.

Uma é o amor sem fim.

A segunda é ver o outono.
Não posso ser sem que as folhas
voem e voltem à terra.

O terceiro é o grave inverno,
a chuva que amei, a carícia
de fogo no frio silvestre.

Em quarto lugar, o verão
redondo como uma melancia.

A quinta coisa são teus olhos,
Matilde minha, bem-amada,
não quero dormir sem teus olhos,
não quero ser sem que me olhes:
eu mudo a primavera
para que me sigas olhando.

Amigos, isso é quanto quero.
É quase nada e quase tudo.

Agora se querem, podem ir.

Vivi tanto que um dia
terão de por força me esquecer,
apagando-me do quadro negro:
Meu coração foi interminável.

Porém, por que peço silêncio
não creiam que vou morrer:
passa comigo o contrário:
sucede que vou viver.

Sucede que sou e que sigo.

Não será, pois lá bem dentro
de mim crescerão cereais,
primeiro os grãos que rompem
a terra para ver a luz,
porém, a mãe-terra é escura:
e dentro de mim sou escuro:
sou como um poço em cujas águas
a noite deixa suas estrelas
e segue sozinha pelo campo.

Sucede que tyanto vivi
que quero viver outro tanto.

Nunca me senti tão sonoro,
nunca tive tantos beijos.

Agora, como sempre, é cedo.
Voa a luz com suas abelhas.

Me deixem só com o dia.
Peço licença para nascer.


Poema "Pido Silencio" de Pablo Neruda.Escrito em agosto de 1957. Publicado em 1958, no livro "Estravagario".

Tradução de Thiago de Mello

PIDO SILENCIO

Ahora me dejen tranquilo.
Ahora se acostumbren sin mí.
Yo voy a cerrar los ojos
Y sólo quiero cinco cosas,
cinco raices preferidas.
Una es el amor sin fin.
Lo segundo es ver el otoño.
No puedo ser sin que las hojas
vuelen y vuelvan a la tierra.
Lo tercero es el grave invierno,
la lluvia que amé, la caricia
del fuego en el frío silvestre.
En cuarto lugar el verano
redondo como una sandía.
La quinta cosa son tus ojos,
Matilde mía, bienamada,
no quiero dormir sin tus ojos,
no quiero ser sin que me mires:
yo cambio la primavera
por que tú me sigas mirando.
Amigos, eso es cuanto quiero.
Es casi nada y casi todo.
Ahora si quieren se vayan.
He vivido tanto que un día
tendrán que olvidarme por fuerza,
borrándome de la pizarra:
mi corazón fue interminable.
Pero porque pido silencio
no crean que voy a morirme:
me pasa todo lo contrario:
sucede que voy a vivirme.
Sucede que soy y que sigo.
No será, pues, sino que adentro
de mí crecerán cereales,
primero los granos que rompen
la tierra para ver la luz,
pero la madre tierra es oscura:
y dentro de mí soy oscuro:
soy como un pozo en cuyas aguas
la noche deja sus estrellas
y sigue sola por el campo.
Se trata de que tanto he vivido
que quiero vivir otro tanto.
Nunca me sentí tan sonoro,
nunca he tenido tantos besos.
Ahora, como siempre, es temprano.
Vuela la luz con sus abejas.
Déjenme solo con el día.
Pido permiso para nacer.



Pablo Neruda [Ricardo Eliecer Neftalí Reyes Basoalto] (n. 12 de julho de 1904, Parral, Chile; m. 23 de setembro de 1973 em Santiago, Chile).

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2016-07-11

Porto Celeste - Afonso Celso


Andei em longas excursões distantes:
Vi palácios, sacrários, monumentos,
Fócos da indústria, artísticos portentos...
Praças soberbas, capitais gigantes.

Mas lia, em toda a parte, nos semblantes,
Dores... lutas... idênticos tormentos...
— Onde a pátria dos risos?!... Desalentos
Colhi apenas, mais cruéis que dantes.

Achei, enfim, num pequenino porto,
Crenças, consolações, calma, conforto,
Tudo que anima, enleva e maravilha:

Ninho de encantos que a inocência habita
Promontório do céu, plaga bendita.
É junto ao berço teu, ó minha filha.

Afonso Celso de Assis Figueiredo Jr. (n. em Ouro Preto, Minas Gerais, a 31 de março de 1860, m. Rio de Janeiro a 11 de julho de 1938)

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2016-07-10

Amar - Laureano Silveira


Nunca aprenderemos a concentrar
o amor
que circula na corrente
da vida.

Lograremos, porventura, reparti-lo
pelos anos, solúvel
no adormecer e no acordar,
até não ser mais do que um resíduo
de insónia a
avinagrar os sonhos
da velhice.

Mas, à maneira de bactéria,
o amor infecta a alma
desde que alguém reconhece
a própria imagem e surpreende nela
o ser escondido.

É essa intelecção que nos
liberta da responsabilidade
de sentir o peso da existência
e o próprio tempo.

in Os dias do amor, um poema para cada dia do ano, recolha, selecção e organização de Inês Ramos, prefácio de Henrique Manuel Bento Fialho

Laureano Manuel Fernandes da Silveira, nasceu no Porto em 10 de julho de 1957, faleceu no Porto em 5 de junho de 2008

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2016-07-09

Soneto de Separação - Vinícius de Moraes



De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.

De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.

De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.

Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.

Extraído de Vinicius de Moraes, Antologia Poética, Publicações Dom Quixote

Vinicius de Moraes (n. Rio de Janeiro a 19 de outubro de 1913; m. Rio de Janeiro, 9 de julho de 1980)

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2016-07-08

O QUE EU VI - Manuel de Arriaga


Saí um dia a contemplar o mundo,
Por ver quanto há de belo e quanto brilha
Na múltipla e gloriosa maravilha,
Que anda suspensa em o azul profundo!

Vi montes, vales, árvores e flores,
Límpidas águas, múrmuras torrentes,
Do grande mar as músicas plangentes,
Dos céus sem fim os trémulos fulgores!

Trouxe os olhos tão ricos de beleza,
O coração tão cheio de harmonia,
De quanto havia em terra, mar e céus,

Que interpretando a sós a Natureza:
Dentro de mim esplêndido fulgia,
Num circulo de luz, teu nome, oh Deus!

in CANTOS SAGRADOS, Manoel Gomes Editor, LISBOA, 1899

Nota: A ortografia foi atualizada pelo autor do blog


Manuel José de Arriaga Brum da Silveira e Peyrelongue (Horta, Matriz, 8 de julho de 1840 — Lisboa, 5 de março de 1917).

Sabia que Manuel de Arriaga, a 24 de agosto de 1911 tornou-se no primeiro presidente eleito da República Portuguesa, sucedendo na chefia do Estado ao Governo Provisório presidido por Teófilo Braga?

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2016-07-07

Não maldigo os versos que lhe fiz - Ronaldo Cunha Lima



Não maldigo os versos que lhe fiz,
embora não devesse tê-los feito.
São versos que nasceram do meu peito,
mas frutos de um amor muito infeliz.

São versos que guardam o que não quis
guardar daquele nosso amor desfeito.
Relendo-os sofro, e sofrendo aceito
o que o destino quis como juiz.

Não os maldigo, não. Não os maldigo.
Vou guardá-los em mim como castigo,
para no amor eu escolher direito.

Só porque nesse amor não fui feliz,
não maldigo os versos que lhe fiz,
embora não devesse tê-los feito.

in 50 CANÇÕES DE AMOR E UM POEMA DE ESPERA

Ronaldo José da Cunha Lima (Guarabira, Paraíba, Brasil 18 de março de 1936 - João Pessoa, Paraíba, 7 de julho de 2012)

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2016-07-06

Penso em ti - Castro Alves

Eu penso em ti nas horas de tristeza
Quando rola a esperança emurchecida
Nas horas de saudade e morbidez
Ai! Só tu és minha ilusão querida
Eu penso em ti nas horas de tristeza.


Vê quanta sombra me escurece o seio!
Que palidez sombria no meu rosto!
Tu és a única luz da treva em meio
Tu és a minha estrela do sol posto...
Contigo a sombra não me tolda o seio.


Quando a teus pés o meu viver s'escoa,
Esqueço a minha sorte, o meu martírio,
Minh'alma como a pomba em sangue voa
Para ir se abrigar à tua, ó lírio,
Quando a teus pés o meu viver s'escoa ...


Bendito o riso desses lábios túmidos!
Bendito o meigo olhar tão peregrino!
Como o sol abre a flor nos campos úmidos
Crenças desperta o teu divino olhar...
E o riso, o riso desses lábios túmidos


Ai! volve! volve peregrina estrela...
Minh'alma é o templo de um amor suave
À tua espera o lampadário vela...
À tua espera perfumou-se a nave...
Ai! volve! volve peregrina estrela!


António Frederico de Castro Alves (nasceu em 14 de março de 1847, na fazenda de Cabaceiras, então freguesia de Muritiba, a poucas léguas da vila de Curralinho, hoje a cidade de Castro Alves, na Bahia, Brasil; m. Salvador, Bahia, Brasil a 6 de julho de 1871)

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2016-07-05

Destino - Mia Couto



à ternura pouca
me vou acostumando
enquanto me adio
servente de danos e enganos

vou perdendo morada
na súbita lentidão
de um destino
que me vai sendo escasso

conheço a minha morte
seu lugar esquivo
seu acontecer disperso

agora
que mais
me poderei vencer?

No livro “Raiz de Orvalho e Outros Poemas”

Mia Couto é o pseudónimo de António Emílio Leite Couto nascido a 5 de julho de 1950 na cidade da Beira, em Moçambique

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2016-07-04

Sensações Desconhecidas - João Lúcio

foto: Sol na vidraça

Há tanta sensação que não conheço,
tanto vibrar de nervos que não sinto;
e contudo parece que os pressinto,
apesar de ver bem que os desconheço.


A sensação que tem, à noite, o ar,
quando o orvalho o toca, em beijos de água,
é porventura, irmã daquela mágoa
que sente, quando chora, o meu olhar?

Tem, porventura, alguma semelhança
a sensação dum cravo numa trança,
com a ânsia de quem morre afogado?

E fico-me a pensar que sentirá
uma vidraça quando o sol lhe dá,
e a rasga a mão de luz, de lado a lado...

João Lúcio Pousão Pereira nasceu a 4 de Julho de 1880 em Olhão (Algarve), onde foi vítima de uma epidemia a 27 de Outubro de 1918. Sobrinho do pintor Henrique Pousão, formou-se em Direito por Coimbra em 1902. Jurisconsulto, orador e deputado, foi também um poeta verboso e irregular, mas com momentos fulgurantes. Na sua obra, há simbolismo, decadentismo, nefelibatismo, esteticismo, impressionismo e transcendentalismo. O seu melhor volume de poesia é de publicação póstuma: «Espalhando Fantasmas» (1921).

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2016-07-02

Trago nas mãos o calor - Orlando da Costa



Trago nas mãos o calor
Que deponho a cada instante
No teu rosto que aspira a primavera que se pisa no chão
E espera o outono das folhas e dos caminhos
E desce comigo ao sabor
Que à terra dá cada breve estação

Trago-te o calor e as mãos inteiras
E nos olhos o horizonte dos nevoeiros no enredo das
....florestas
Das vinhas colhidas pelos amantes reunidos à beira
....das manhãs
E dos barcos e das pombas em planícies sem trincheiras

Trago para nós a largura das terras e do mar
Onde se perpetue o amor dos homens
Na paz de cada olhar

in "Os olhos sem fronteira", 1953

Orlando António Fernandes da Costa ComL (Lourenço Marques, atual Maputo, 2 de julho de 1929 — Lisboa, 27 de janeiro de 2006)

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2016-07-01

Insónia - Carlos de Oliveira

Cactos no deserto do Arizonafoto de Jim Richardson daqui

Penso que sonho. Se é dia, a luz não chega para alumiar o caminho
pedregoso; se é noite, as estrelas derramam uma claridade desabitual.
Caminhamos e parece tudo morto: o tempo, ou se cansou já desta
longa caminhada e adormeceu, ou morreu também. Esqueci a fisionomia
familiar da paisagem e apenas vejo um trémulo ondular de deserto, a
silhueta carnuda e torcida dos cactos, as pedras ásperas da estrada.
Chove? Qualquer coisa como isso. E caminhando sempre, há em redor
de nós a terra cheia de silêncio.
Será da própria condição das coisas serem silenciosas agora?

Terras da harmonia

Extraído de Poemas Portugueses Antologia da Poesia Portuguesa do Séc. XIII ao Séc. XXI; selecção, organização introdução e notas de Jorge Reis-Sá e Rui Lage; prefácio de Vasco Graça Moura.

Carlos Alberto Serra de Oliveira (n. em Belém do Pará, a 10 de agosto de 1921 e morreu em Lisboa a 1 de julho de 1981)

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