Blog Widget by LinkWithin

2016-01-29

Carícias - Francisco Bugalho



Carícias sábias minhas mãos buscaram
Por teu corpo em botão, alvorescente;
E meus lábios sonâmbulos pisaram
Branduras de veludo alvo e dormente.

Triunfos nos meus olhos despontaram,
E gritos de clarim e de trombeta
Em meus ouvidos sôfregos soaram,
Como cantos de amor dalgum poeta.

Ritmos de doçuras e quebrantos,
Corpos vergados como dois acantos,
Gritaram alto que era doce a vida.

Apertei-te na ânsia de perder-te
E quando regressei, voltei a ver-te:
Vi-te ainda mais longe e mais perdida.

(Em C. Vide, 4 Janº 929)

Francisco José Lahmeyer Bugalho nasceu a 26 de julho de 1905, no Porto, e faleceu a 29 de janeiro de 1949, em Castelo de Vide

Read More...

2016-01-28

Os Treze Anos (Cantilena) - António Feliciano de Castilho

Já tenho treze anos,
Que os fiz por Janeiro:
Madrinha, casai-me,
Com Pedro gaiteiro.

Já sou mulherzinha;
Já trago sombreiro;
Já bailo ao domingo
Co’as mais no terreiro.

Já não sou Anita,
Como era primeiro,
Sou a senhora Ana,
Que mora no outeiro.

Nos serões já canto,
Nas feiras já feiro,
Já não me dá beijos
Qualquer passageiro.

Quando levo as patas,
E as deito ao ribeiro,
Olho tudo à roda
De cima do outeiro,

E só se não vejo
Ninguém pelo arneiro,
Me banho co’as patas
Ao pé do salgueiro.

Miro-me nas águas
Rostinho trigueiro,
Que mata d’amores
A muito vaqueiro.

Miro-me olhos pretos
E um riso fagueiro,
Que diz a cantiga
Que são cativeiro.

Em tudo, madrinha,
Já por derradeiro
Me vejo mui outra
Da que era primeiro.

O meu gibão largo
D’arminho e cordeiro
Já o dei à neta
Do Brás cabaneiro,

Dizendo-lhe – Toma
Gibão domingueiro,
D’ilhoses de prata,
D’arminho e cordeiro.

A mim já me aperta,
E a ti te é laceiro;
Tu brincas co’as outras,
E eu danço em terreiro.

Já sou mulherzinha,
Já trago sombreiro;
Já tenho treze anos,
Que os fiz por Janeiro.

Já não sou Anita,
Sou a Ana do outeiro;
Madrinha, casai-me,
Com Pedro gaiteiro.

Não quero o sargento,
Que é muito guerreiro,
De barbas mui feras,
E olhar sobranceiro.

O mineiro é velho;
Não quero o mineiro:
Mais valem treze anos
Que todo o dinheiro.

Tão pouco me agrado
Do pobre moleiro,
Que vive na azenha
Como um prisioneiro.

Marido pretendo
De humor galhofeiro,
Que viva por festas,
Que brilhe em terreiro.

Que em ele assomando
Co’o tamborileiro,
Logo se alvorote
O lugar inteiro.

Que todos acorram
Por vê-lo primeiro;
E todas perguntem
Se ainda é solteiro.

E eu sempre com ele,
Romeira e romeiro,
Vivendo de bodas,
Bailando ao pandeiro.

Ai, vida de gostos!
Ai céu verdadeiro!
Ai Páscoa florida,
Que dura ano inteiro!

Da parte, madrinha,
De Deus vos requeiro;
Casai-me hoje mesmo
Com Pedro Gaiteiro.

António Feliciano de Castilho, 1.º visconde de Castilho (Lisboa, 28 de janeiro de 1800 — Lisboa, 18 de junho de 1875)



Read More...

2016-01-27

Jaguadarte / Jabberwocky - Lewis Carroll

 
Era briluz.
As lesmolisas touvas roldavam e reviam nos gramilvos.
Estavam mimsicais as pintalouvas,
E os momirratos davam grilvos.

"Foge do Jaguadarte, o que não morre!
Garra que agarra, bocarra que urra!
Foge da ave Fefel, meu filho, e corre
Do frumioso Babassura!"

Ele arrancou sua espada vorpal
e foi atras do inimigo do Homundo.
Na árvore Tamtam ele afinal
Parou, um dia, sonilundo.

E enquanto estava em sussustada sesta,
Chegou o Jaguadarte, olho de fogo,
Sorrelfiflando atraves da floresta,
E borbulia um riso louco!

Um dois! Um, dois! Sua espada mavorta
Vai-vem, vem-vai, para tras, para diante!
Cabeca fere, corta e, fera morta,
Ei-lo que volta galunfante.

"Pois entao tu mataste o Jaguadarte!
Vem aos meus braços, homenino meu!
Oh dia fremular! Bravooh! Bravarte!"
Ele se ria jubileu.

Era briluz.
As lesmolisas touvas roldavam e relviam nos gramilvos.
Estavam mimsicais as pintalouvas,
E os momirratos davam grilvos.


Tradução de Augusto de Campos

Original

Jabberwocky

’Twas brillig, and the slithy toves
      Did gyre and gimble in the wabe:
All mimsy were the borogoves,
      And the mome raths outgrabe.

“Beware the Jabberwock, my son!
      The jaws that bite, the claws that catch!
Beware the Jubjub bird, and shun
      The frumious Bandersnatch!”

He took his vorpal sword in hand;
      Long time the manxome foe he sought—
So rested he by the Tumtum tree
      And stood awhile in thought.

And, as in uffish thought he stood,
      The Jabberwock, with eyes of flame,
Came whiffling through the tulgey wood,
      And burbled as it came!

One, two! One, two! And through and through
      The vorpal blade went snicker-snack!
He left it dead, and with its head
      He went galumphing back.

“And hast thou slain the Jabberwock?
      Come to my arms, my beamish boy!
O frabjous day! Callooh! Callay!”
      He chortled in his joy.

’Twas brillig, and the slithy toves
      Did gyre and gimble in the wabe:
All mimsy were the borogoves,
      And the mome raths outgrabe.

Charles Lutwidge Dodgson, mais conhecido pelo seu pseudónimo Lewis Carroll,  nasceu em Daresbury, Inglaterra a 27 de janeiro de 1832,  m. Guildford, Inglaterra, 14 de Janeiro de 1898

Read More...

2016-01-26

À Senhora Maria Laranjo da Praia da Nazaré

À Senhora Maria Laranjo
da Praia da Nazaré

Minha boa Amiga senhora Maria
Laranjo, da praia da Nazaré,
em quem tanto admiro essa fidalguia
de um povo que na Europa o mais fino é,
muito agradecido pelo almoço Real
que aí me deu junto às ondas do mar;
tivera Camões comido um igual,
fazia-lhe versos, mas não a zombar.
Minha boa Amiga, senhora Maria
Laranjo, da praia da Nazaré,
por minha mulher a receberia
(se a minha Amiga quisesse, já se vê)
se acaso a conheço quando era solteiro,
para ser agora, — ventura tamanha —
em vez de pobre doutor, marinheiro,
mendigo do mar, arrais de companha.
Estando da banda dos pobres do mar
já eu não teria, como tenho às vezes,
remorsos tamanhos e tão graves fezes
de ver tantas dores em roda a penar;
assim penaria e acreditaria
como eles, por lindo milagre da fé,
que depois no mar do Paraíso seria
o pescador mais feliz da Nazaré!...
Mas já que eu errei, por destino fatal,
o que era a minha pura, certa vocação,
saiba que em si louvo e admiro Portugal
no que tem de belo — alma e coração.
E saibam as altas senhoras princesas
que há uma fidalga aí na Nazaré
com quem elas podem aprender finezas
e a dar um almoço que tão fino é.

Onde a terra se acaba e o mar começa, 1940

Afonso Lopes Vieira (n. em Cortes, Leiria a 26 de janeiro de 1878 e faleceu em Lisboa a 25 de janeiro de 1946).

Ler do mesmo autor, neste blog:
A Última Cantiga

Read More...

2016-01-25

TEU LUAR - Maia de Melo Lopo



Baptizo a bruma das serras... encanto,
botão de vida, beleza dócil gota de luz,
geme na candura o grito, jejum das terras,
à tua porta estende a aurora o seu manto,
no amor de tudo que não importa amar.
Na alma calada as bocas deitam fora,
a voz delicada da poetiza, fome de cantar,
morde a dor que sufoca, busca a toda a hora,
pranto e adeus, solidão telhado do teu luar.

Benvinda da Conceição de Melo Lopo, que usa literariamente Maia de Melo Lopo, nasceu em Lisboa a 25 de janeiro de 1954

Read More...

2016-01-24

No Farol da Guia - António Manuel Couto Viana



Pedi ao Farol da Guia,
Pra que a nau não naufragasse
Na noite que fôr o dia,
Que fosse luz e a guiasse.


E pedi mais:
Que baloiçasse no ar
Os sinais
Do tufão que vai chegar,
Pra que ao abrigo do cais
A nau achasse lugar.


E o primeiro farol
De aviso à navegação
No mundo onde nasce o Sol,
Não me disse sim nem não.


Mas a âncora ancorada,
Como fanal de bonança,
Entre os muros da esplanada,
Disse, sem me dizer nada:
- Tem esperança!

 António Manuel Couto Viana (n. Viana do Castelo, 24 de Janeiro de 1923 - m. Lisboa, 8 de Junho de 2010) .

Ler do mesmo autor, neste blog: Despojo, No Bazar; 23; Estival;  Súplica a Eros; A Tartaruga

Read More...

2016-01-22

Que o breve - Alice Ruiz

Que o breve
seja de um longo pensar

Que o longo
seja de um curto sentir

Que tudo seja leve
de tal forma
que o tempo nunca leve.

Alice Ruiz nasceu em Curitiba (PR), em 22 de janeiro de 1946

Read More...

2016-01-21

Come è forte il rumore - Sandro Penna

Como é forte o ruído da aurora!
Feito de coisas mais que de pessoas.
Precede-o às vezes um sibilo breve,
uma voz que alegre desafia o dia.
Mas logo na cidade tudo é imerso
e a minha estrela é aquela estrela pálida
minha lenta morte sem desesperança.


Tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti

Come è forte il rumore dell’alba!
Fatto di cose più che di persone.
Lo precede talvolta in fischio breve,
una voce che lieta sfida il giorno.
Ma poi nella città tutto è sommerso.
e la mia stella è questa stella scialba
mia lenta morte senza disperazione.
De Croce e delizia, Longanesi


Sandro Penna (n. Perugia, 12 Jun. 1906 – m. Roma 21 Jan. 1977)

Read More...

2016-01-20

O Grito - Renata Pallottini


Se ao menos esta dor servisse
se ela batesse nas paredes
abrisse portas
falasse
se ela cantasse e despenteasse os cabelos

se ao menos esta dor se visse
se ela saltasse fora da garganta como um grito
caísse da janela fizesse barulho
morresse

se a dor fosse um pedaço de pão duro
que a gente pudesse engolir com força
depois cuspir a saliva fora
sujar a rua os carros o espaço o outro
esse outro escuro que passa indiferente
e que não sofre tem o direito de não sofrer

se a dor fosse só a carne do dedo
que se esfrega na parede de pedra
para doer doer doer visível
doer penalizante
doer com lágrimas

se ao menos esta dor sangrasse

  in 'A Faca e a Pedra'

Renata Pallottini nasceu em São Paulo, SP, a 20 de janeiro de 1931

Read More...

2016-01-19

Poema à Mãe - Eugénio de Andrade


No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe

Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos.

Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!

Olha — queres ouvir-me? —
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;

ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;

ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal...

Mas — tu sabes — a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber,

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.

in "Os Amantes Sem Dinheiro"


José Fontinhas, que usou o pseudónimo literário de Eugénio de Andrade, nasceu em 19 de janeiro de 1923 na Póvoa de Atalaia, Fundão; m. no Porto a 13 de junho de 2005

Do mesmo autor ler neste blog:
Poema XIV de As mãos e os frutos
Surdo, Subterrâneo Rio
Os Olhos Rasos de Água

Read More...

2016-01-18

Olho nos pingos de água - Alves Bento Belisário




Olho nos pingos de água
Todo o fogo do mundo;
O sol de um inquietar
Sem fundo
Num rouxinol que o cantar
Na noite plantou.

Alves Bento Belisário é pseudónimo de Manuel Joaquim Moreira Bento nascido a 18 de Janeiro de 1969 na Freguesia de Medas, Concelho de Gondomar

Read More...

2016-01-17

Liberdade - Miguel Torga



— Liberdade, que estais no céu...
Rezava o padre-nosso que sabia,
A pedir-te, humildemente,
O pio de cada dia.
Mas a tua bondade omnipotente
Nem me ouvia.

— Liberdade, que estais na terra...
E a minha voz crescia
De emoção.
Mas um silêncio triste sepultava
A fé que ressumava
Da oração.

Até que um dia, corajosamente,
Olhei noutro sentido, e pude, deslumbrado,
Saborear, enfim,
O pão da minha fome.
— Liberdade, que estais em mim,
Santificado seja o vosso nome.


Adolfo Correia da Rocha que utilizou o pseudónimo literário de Miguel Torga nasceu a 12 de agosto de 1907 em São Martinho da Anta, Trás-os-Montes, faleceu em 17 de janeiro de 1995.

Ler do mesmo autor, neste blog:
Solidão; Boletim; ; Encontro; Procura; Ficam as Sombras; Sei um ninho; Queixa; Hora de amor; Mea culpa; Anátema; Livro de Horas; Quase um poema de amor; Perfil; Exorcismo; Bucólica; Arquivo; Rogo,
Claro-escuro

Read More...

2016-01-15

Paroles, paroles... - Fernando Semana


Que interesse tem o que eu digo
Para as paredes que me rodeiam
Se não fazem eco nem, por um postigo
Aberto, as palavras se incendeiam?

Tudo fica na mesma, sem mel nem fel…
Melhor pintar letras em branco papel!
Sempre subsistem as nódoas de tinta
Mesmo que, através da mão, eu minta...

E quem sabe, o tempo e o vento as leve!

Read More...

IDENTIDADE - Edgar Carneiro



Sou de longe além dos montes
Onde meu amor gerou
Alguém que há-de sonhar
O mesmo sonho que eu tive
Pois que lá também amou
E bebeu das mesmas fontes.

Sou de longe e não esqueço
O «Reino» maravilhoso»
Onde a urze tem conluio
Com a vinha que dá sangue
E o centeio que dá pão.

Sou de longe mas fiquei
Onde o mar é meu irmão.


in Mar Amar, 1992


Edgar Carneiro nasceu em Chaves no dia 8 de maio de 1913, faleceu em V. N. de Gaia a 15 de janeiro de 2011

Read More...

2016-01-14

Não Faças Nada - Casimiro de Brito

Espera um pouco: Não faças nada o silêncio
Decompõe as cores desse país solar ondas
De silêncio negado multiplicado escuta
Um pouco: Ouve o sangue da luz a luz que circula
Na matéria vulnerável do teu corpo: Espera
Um pouco: O deus que não tenho não é um objecto
Insensível e pouco inteligível
Como o deus desenhado pelos teólogos: Ouve
As tuas árvores as mãos que tecem e destecem
As rugas do mar a trémula violência
De cada acto: O que te peço é que não faças nada
A não ser o silêncio: Espera um pouco.

(Nem Senhor Nem Servo,1986) 

Casimiro Cavaco Correia de Brito (nasceu em Loulé, Algarve, a 14 de janeiro de 1938)

Ler neste blog, do mesmo autor:
Cuidado. O amor
Cidade Branca
Se

Read More...

2016-01-13

Deixa-te guiar pelo fogo que do teu corpo emana - Gisela Ramos Rosa

O universo que seguras é a matriz dos teus sonhos
flutua e toca a chama que no centro te chama.


Deixa-te tocar pelo fogo que o teu corpo reclama
deixa-te guiar pelo fogo que do teu corpo emana.

Extraído daqui

Gisela Maria Gracias Ramos Rosa nasceu a 13 de janeiro de 1964 na cidade de Maputo, Moçambique.

Read More...

2016-01-12

Despedida - Rubem Braga

E no meio dessa confusão alguém partiu sem se despedir; foi triste. Se houvesse uma despedida talvez fosse mais triste, talvez tenha sido melhor assim, uma separação como às vezes acontece em um baile de carnaval — uma pessoa se perda da outra, procura-a por um instante e depois adere a qualquer cordão. É melhor para os amantes pensar que a última vez que se encontraram se amaram muito — depois apenas aconteceu que não se encontraram mais. Eles não se despediram, a vida é que os despediu, cada um para seu lado — sem glória nem humilhação.

Creio que será permitido guardar uma leve tristeza, e também uma lembrança boa; que não será proibido confessar que às vezes se tem saudades; nem será odioso dizer que a separação ao mesmo tempo nos traz um inexplicável sentimento de alívio, e de sossego; e um indefinível remorso; e um recôndito despeito.

E que houve momentos perfeitos que passaram, mas não se perderam, porque ficaram em nossa vida; que a lembrança deles nos faz sentir maior a nossa solidão; mas que essa solidão ficou menos infeliz: que importa que uma estrela já esteja morta se ela ainda brilha no fundo de nossa noite e de nosso confuso sonho?

Talvez não mereçamos imaginar que haverá outros verões; se eles vierem, nós os receberemos obedientes como as cigarras e as paineiras — com flores e cantos. O inverno — te lembras — nos maltratou; não havia flores, não havia mar, e fomos sacudidos de um lado para outro como dois bonecos na mão de um titeriteiro inábil.

Ah, talvez valesse a pena dizer que houve um telefonema que não pôde haver; entretanto, é possível que não adiantasse nada. Para que explicações? Esqueçamos as pequenas coisas mortificantes; o silêncio torna tudo menos penoso; lembremos apenas as coisas douradas e digamos apenas a pequena palavra: adeus.

A pequena palavra que se alonga como um canto de cigarra perdido numa tarde de domingo.

Extraído do livro "A Traição das Elegantes", Editora Sabiá – Rio de Janeiro, 1967, pág. 83.

Nota do Webmaster: Não... não ficou nenhum sentimento de alívio nem muito menos de sossego... mas é verdade que houve momentos perfeitos que passaram e que a lembrança deles nos faz sentir maior a nossa solidão!


Rubem Braga «talvez o maior cronista brasileiro depois de Machado de Assis» nasceu em Cachoeiro de Itapemirim, ES, a 12 de janeiro de 1913 e faleceu em 19 de dezembro de 1990).

Read More...

2016-01-11

Apelo - Vítor Cintra


Ó tu, deusa maior da lusa gente,
Que, nas histórias vivas do passado,
Ousaste, com olhar mais indulgente,
Deixar-nos ver da terra um outro lado;
.
Ó tu, Moira seráfica, sem tempo,
Chegada à Lusitânia noutra era,
Que deste aos portugueses mor alento,
Capaz de derrotar qualquer Quimera;
.
A nós, que somos filhos desse povo
A quem, por protecção de Juno e Marte,
Deixaste que chegasse a toda a parte,
.
Tecida a nossa vida em fio novo,
Demonstra que a coragem doutros tempos
Apenas nos deixou por uns momentos.

in Entre o Longe e o Distante

Vítor Cintra nasceu em Sintra a 11 de Janeiro 1941

Read More...

2016-01-10

Doze Moradas de Silêncio 2 - Al Berto


A escrita é a minha primeira morada de silêncio
a segunda irrompe do corpo movendo-se por trás das palavras
extensas praias vazias onde o mar nunca chegou
deserto onde os dedos murmuram o último crime
escrever-te continuamente... areia e mais areia
construindo no sangue altíssimas paredes de nada

esta paixão pelos objectos que guardaste
esta pele-memória exalando não sei que desastre
a língua de limos

espalhávamos sementes de cicuta pelo nevoeiro dos sonhos
as manhãs chegavam como um gemido estelar
e eu perseguia teu rasto de esperma à beira-mar

outros corpos de salsugem atravessam o silêncio
desta morada erguida na precária saliva do crepúsculo

Alberto Raposo Pidwell Tavares, que usou o pseudónimo literário Al Berto, nasceu em Coimbra a 11 de janeiro de 1948; m. em Lisboa a 13 de junho de 1997.

Read More...

Praga - Jaroslav Seifert

Um cacto gótico floresce em crânios aristocráticos
sobre os mantos elefantinos dos tabuleiros
e antigas melodias apodrecem
nas cavidades dos órgãos melancólicos
e nos cachos dos tubos de metal.

O vento dispersou
as balas de canhão e a semente das guerras.

A noite empina-se sobre todas as coisas
e no buxo de cúpulas sempre verdes
um imperador néscio caminha sobre a ponta dos pés
para os jardins mágicos de suas retortas
e na bonança de noites rosadas
ressoa o tilintar de uma folhagem cristalina
que dedos de alquimista tocam
feito vento.

Os telescópios cegaram de horror ao cosmos
e a morte sugou
os fantásticos olhos dos estelonautas.

A lua no entanto pôs ovos sobre as nuvens
estrelas novas brotaram apressadas como pássaros
que migram de terras enegrecidas
cantarolando a canção dos destinos humanos
mas não há ninguém
capaz de compreendê-los.

Ouvi as fanfarras do silêncio
dirigimo-nos rumo ao futuro invisível
sobre rotos tapetes do sudário dos séculos
e Sua Majestade o pó
ajeita-se leve sobre o trono abandonado.

(Trad.: Aleksandar Jovanovic)

in Rosa do Mundo 2001 Poemas para o Futuro, Porto Editora

Jaroslav Seifert (Praga, 23 de setembro de 1901 — Praga, 10 de janeiro de 1986)

Read More...

2016-01-09

Tecendo a Manhã - João Cabral de Melo Neto

1

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

2

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

João Cabral de Melo Neto (n. no Recife, a 9 de janeiro de 1920, m. no Rio de Janeiro a 09 de outubro de 1999)

Read More...

2016-01-08

O rubro das palavras - Políbio Alves



Escrevo
todas as manhãs
como se fosse
pela primeira vez.

Todas as manhãs
eu não escrevo
pela primeira vez.

Mas, todas as manhãs
escrevo palavras
espantosamente
infiéis.

Políbio Alves dos Santos nasceu em 8 janeiro de 1941, no bairro Cruz das Armas, periferia de João Pessoa, Paraíba.

Read More...

2016-01-07

A mágoa é um vício - Helder Moura Pereira



A mágoa é um vício, a ele volto
pelas madeiras desta casa, as memórias
são mais que os sinais pendurados
ao longo das paredes, não descrevo
o que vejo. O que sinto quase
está no silêncio, deixa de ser tempo
o tempo da noite, nos papéis
há desenhos que o matam, pontos
ganhos, contas de somar, fáceis
artimanhas evitando as palavras. Nada
difere de como ponho a mão na testa,
de como se afasta o sol para trás
dos castanheiros. Tento dizer
que sou como vós, leves amantes
de suaves lazeres, contradigo, desminto,
nada acontece. Para o dia de hoje
um pequeno esboço de tristeza, derrota
de cumprir, tarefa de vencer, antes
da noite os ombros, as rugas, terão
significado preciso. Só o recomeço
será tempo de sorrisos.

(Gestos de miradoiro)

Extraído de Antologia da Poesia Portuguesa Contemporânea Um Panorama
Organização de Alberto da Costa e Silva e Alexei Bueno; Lacerda Editores, 1999


Helder Moura Pereira nasceu em Setúbal, a 7 de janeiro de 1949

Read More...

2016-01-06

Excerto de "O Mundo em que vivi" - Ilse Losa (na passagem do 10º aniversário do seu desaparecimento)


O primeiro dia da escola. A saca às costas, caminhei ao lado da minha mãe, cheia de curiosidade e de receios. O sr. Brand, o professor, distribuía sorrisos animadores aos meninos, que o fitavam com desconfiança. A barba grisalha e o colarinho engomado davam-lhe um ar de austeridade, mas os olhos alegres protestavam contra tal impressão. Começou por nos falar, e doseava serenidade com humor para afugentar os nossos medos. De todas as escolas por que passei, a de que verdadeiramente gostei foi a escola primária. Quando o sr. Brand tomou nota do meu nome ninguém se virou para mim com sorrizinhos por soar a judaico, ninguém achou estranho eu responder «Israelita» à pergunta do sr. Brand à minha religião. Fora a mãe que me recomendara: «Quando o sr. Brand te perguntar pela religião, diz-lhe que és israelita. Soa melhor do que judia». Eu não concordava, porque achava «israelita» uma palavra estranha que não parecia pertencer à minha língua e, por isso, corei de embaraço ao pronunciá-la. E quando o sr. Brand quis saber a profissão do meu pai respondi «negociante de cavalos». Coisa natural. Muitos alunos eram filhos de lavradores e conheciam o meu pai. Não me sentia envergonhada daquilo que eu e o meu pai éramos, como aconteceria mais tarde, no liceu, quando a minha mãe me recomendou que às perguntas respondesse, além de «sou israelita», que o meu pai era «comerciante». O liceu ficava em L..., a cidade onde havia o teatro e a sinagoga. Tomávamos, manhã cedo, o comboio e, com gesto arrogante, estendíamos o passe anual ao revisor.

No primeiro dia de aulas tivemos de dizer o nosso nome e profissão do pai e a religião. Conforme recomendação da minha mãe eu disse: - O meu pai é comerciante. Sou israelita. Na escola primaria tudo fora natural. No liceu colegas viraram-se e olharam-me. Mais duas judias faziam parte da turma e uma delas, Hanna Berg, respondeu à pergunta com voz firme: «Sou judia». Os gestos de Hanna eram extraordinariamente vivos e comunicativos, enquanto nos seus olhos havia a expressão dessa melancolia penetrante das seculares lendas de sabedorias e flagelos. Hanna propôs-me que a acompanhasse a uma reunião dos sionistas. E nessa tarde. em que conheci o grupo juvenil a que ela pertencia, compreendi por que razão dissera com tanta firmeza: «Sou judia». Numa sala espaçosa vi rapazes e raparigas de blusa branca e gravata azul e, encostada a um canto, a bandeira azul e branca. Hanna saudou o grupo com «Shalom», «paz», e todos lhe responderam do mesmo modo. Desprendeu-se do grupo um rapaz. Bateu palmas. Fez-se silêncio, e ele disse: - Vamos começar. Hanna indicou-me uma cadeira e segredou-me: - É o Bertold. Repara bem nele. Bertold: alto, de calções de camurça, expressão franca e decidida. Levantou a mão para dar sinal de começar e vi que era uma mão larga e forte. No momento em que Bertold dobrou os ombros para trás, endireitou o tronco e moveu a mão, os rapazes e as raparigas começaram a falar em coro: primeiro um murmúrio crescente, depois vozes altas, vigorosas, que pareciam vir duma grande massa de gente. Diziam de injustiças, de orgulho, de expectativa duma vida livre em Israel. Como um chefe de orquestra, Bertold regia-os. Juntava as mãos em concha para em seguida as erguer num movimento rápido: as vozes elevavam-se; abria os braços como quem pedia para recuarem: as vozes baixavam; rasgava o ar com as mãos: as vozes emudeciam. As frases esperançosas, a convicção com que eram ditas, isso impressionava-me fortemente. Concluí que aniquilaram todas as dúvidas e resignação dos velhos, que encontraram rumos novos. «Devemos ter orgulho por sermos judeus», diziam os velhos, mas na verdade procuravam apenas consolo. Esses jovens, porém, esses sim orgulhavam-se deveras. Depois das declamações começaram a dançar a «horra». Deitando os braços pelos ombros uns dos outros formavam um círculo, rodavam para a esquerda sempre para a esquerda, alegres e entusiásticos. Cantaram a comunicativa melodia da «hatikwah», a canção da «esperança». Excitada, falei em casa da reunião. Tencionava voltar lá para aprender a falar em coro, dançar a «horra» e cantar a «hatikwah». Mas tanto o meu pai como a minha mãe acharam que não, que isso não me servia. Só me meteria na cabeça a emigração para a Palestina e eu, como boa alemã, não devia abandonar a pátria a que pertencia. Quando falei ao sr. Heim, sorriu um tanto triste: - Repara, Rose, o meu rapaz também anda com os sionistas e por isso há discórdia em casa. Ele e a mãe quase que não se falam.

Ilse Lieblich Losa (n. Melle-Buer, Baixa Saxónia, Alemanha, a 20 de março de 1913 — f. Porto, 6 de janeiro 2006)

Read More...

2016-01-05

SONETO IX de A VIDA SOLITÁRIA - Manuel Botelho de Oliveira



Que doce vida, que gentil ventura,
Que bem suave, que descanso eterno,
Da paz armado, livre do governo,
Se logra alegre, firme se assegura!

Mal não molesta, foge a desventura,
Na primavera alegre, ou duro inverno,
Muito perto do céu, longe do inferno,
O tempo passa, o passatempo atura.

A riqueza não quer, de honra não trata,
Quieta a vida, firme o pensamento,
Sem temer da fortuna a fúria ingrata:

Porém atento ao rio, ao bosque atento,
Tem por riqueza igual do rio a prata,
Por aura honrosa tem do bosque o vento.

Manuel Botelho de Oliveira (n. Salvador, Bahia, 1636 — m. Salvador, Bahia, 5 de janeiro de 1711)

Read More...

2016-01-04

Meus oito anos - Casimiro de Abreu



Oh! Que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida,
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!

Como são belos os dias
Do despontar da existência!
- Respira a alma inocência
Como perfumes a flor;
O mar é lago sereno,
O céu - um manto azulado,
O mundo - um sonho dourado,
A vida - um hino d'amor!

Que auroras, que sol, que vida,
Que noites de melodia,
Naquela doce alegria,
Naquele ingênuo folgar!
O céu bordado d'estrelas,
A terra de aromas cheia,
As ondas beijando a areia
E a lua beijando o mar!

Oh! dias de minha infância
Oh! meu céu de primavera!
Que doce à vida não era
Nessa risonha manhã!
Em vez das mágoas de agora,
Eu tinha nessas delícias
De minha mãe as carícias
E beijos de minha irmã!

Livre filho das montanhas,
Eu ia bem satisfeito,
Da camisa aberto o peito,
- Pés descalços, braços nus -.
Correndo pelas campinas
À roda das cachoeiras,
Atrás das asas ligeiras
Das borboletas azuis!

Naqueles tempos ditosos
Ia colher as pitangas,
Trepava a tirar as mangas,
Brincava à beira do mar;
Rezava às Ave-Marias,
Achava o céu sempre lindo,
Adormecia sorrindo
E despertava a cantar!

Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
- Que amor, que sonhos, que flores -,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!

Casimiro de Abreu (n. na fazenda da Prata, no atual município de Silva Jardim (RJ), em 4 de janeiro de 1839; m. na fazenda do Indaiaçu, no atual município de Casimiro de Abreu (RJ), em 18 de outubro de 1860)

Read More...

2016-01-03

soneto dos sonetos - Vasco Graça Moura

catorze versos tem este soneto
de dez sílabas cada, na contagem
métrica portuguesa; de passagem,
o esquema abba dá esqueleto

aos versos do começo: a engrenagem
podia ser abab, mas meto
aqui baab: destarte, preto
no branco, instabilizo a sua imagem.

teria, isabelino, uma terceira
quadra, cddc e ee final,
em vez de dois tercetos com quilate

sempre de ouro no fim, de tal maneira
porém o engengrei continental
que em duplo cde tem seu remate.

in poesia reunida, vol. 2, Quetzal

Vasco Graça Moura nasceu na freguesia da Foz do Douro, no Porto, a 3 de Janeiro de 1942; faleceu no dia 27 de abril de 2014, em Lisboa

Ler do mesmo autor, neste blog:
mas nem se sabe, amor
blues da morte de amor
do tempo que passa
o soneto encontrado na garrafa
Soneto do amor e da morte
Lamento por Diotima






Read More...