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2016-08-31

Intangível - Charles Baudelaire

Quero-te como quero à abóbada nocturna,
Ó vazo de tristeza, ó grande taciturna!
E tanto mais te quero, ó minha bem amada,
Por te ver a fugir, mostrando-te empenhada
Em fazer aumentar, irónica, a distância

Que me separa a mim da celestial estância.
Bem a quero atingir, a abóbada estrelada,
Mas, se julgo alcançar, vejo-a mais afastada!
Pois se eu adoro até - ferro monstro, acredita! -
O teu frio desdém, que te faz mais bonita!


Tradução de Delfim Guimarães
in As Flores do Mal

Charles-Pierre Baudelaire (nasceu a 9 de abril de 1821 em Paris, m. 31 de agosto de 1867)

2016-08-30

Mar dos Olhos - Luís Monteiro da Cunha


Quando me tocas
Com essas mãos
Molhadas
De sabor a mar
Sensíveis, salgadas

Eu me espanto!

Na doçura do teu olhar
Reflectido nas pupilas
Adivinho o quanto
Tu choraste
Ansiaste
Para me abraçar

O que sofres, é sempre passado.

Quando nos meus braços te abandonas
solicitas-me desejo. Único momento,
quando em ti me afogo, não sou, não somos
desejo ou saudade, apenas espírito leviano
que nos corpos aportou.

Nada me dizes,
consumada a transcendência,
Do que te invade no dia e na noite,
Quando não estou.

Mas teus olhos não abandonam
a vidraça da janela, que é fria e quebrável.
Junto dela, esperas que a noite se rasgue no ventre do dia.
Que o verbo regresse e esconda em ti a apatia

O verso descrito nos límpidos lençóis
Inócua promessa de que um dia
Todos, seremos apenas dois

Na fogueira da noite fria
Nada existe depois.

Depois… bem, depois
Somos madrugadas…

Quando me tocas
Com tuas mãos
Molhadas
Das lágrimas de mar
Ternas, salgadas

Eu, ainda me espanto!

Extraído dp blog do autor aqui

Luís Manuel Peixoto Monteiro da Cunha nasceu a 30 de agosto de 1962 em S. Mamede de Infesta

2016-08-29

La "Toná" de la Frágua (Seguiriyas Gitanas) - Manuel Machado

Mi pena es mu mala,
porque es una pena que yo no quisiera
que se me quitara.

Vino como vienen,
sin saber de dónde,
el agua a los mares, las flores a mayo,
los vientos al bosque.

Vino, y se ha quedado
en mi corazón,
como el amargo en la corteza verde
del verde limón.

Como las raíces
de la enredadera,
se va alimentando la pena en mi pecho
con sangre e mis venas.

Yo no sé por dónde,
ni por dónde no,
se me ha liao esta soguita al cuerpo
sin saberlo yo.

Pensamiento mío,
¿adónde te vas?
No vayas a casa de quien tú solías,
que no pués entrar.

A pasar fatigas
estoy ya tan hecho
que las alegrías se me vuelven penas
dentro de mi pecho.

Mare de mi alma,
la vía yo diera
por pasar esta noche de luna
con mi compañera.

A la vera tuya
no puedo volver...
¡Cómo por unas palabritas locas
se pierde un querer!

Yo voy como un ciego
por esos caminos.
Siempre pensando en la penita negra
que llevo conmigo.

Ya se han acabado
los tiempos alegres.
Las florecitas que hay en tu ventana
para mí no huelen.

Desde que te fuiste,
serrana, y no vuelves,
no sé qué dolores son estos que tengo,
ni dónde me duelen.

Esta cadenita,
mare, que yo llevo,
con los añitos que pasan, que pasan,
va criando hierro.

Los bienes son males,
los males son bienes...
Las mis alegrías, ¡cómo se me han vuelto
fatigas de muerte!

Toíta la tierra
la andaré cien veces,
y volveré a andarla pasito a pasito,
hasta que la encuentre.

Se quebró el jarrito
pintao del querer.
¡Cómo plateros ni artistas joyeros
lo puen componer!

La prueba del frío,
la prueba del fuego...
¡Cómo ha salido mi corasonsiyo
del mejor acero!

Yo corté una rosa
llenita de espinas...
Como las rosas espinitas tienen,
son las más bonitas.

El cristal se rompe
del calor al frío,
como se ha roto de alegría y pena
mi corasonsiyo.

Yo sentí el crujío
del cristalito fino que se rompe
del calor al frío.

Maresita'r Carmen,
guiarme los pasos,
pa que me aparte de la mala senda
que vengo pisando.

Las que se publican
no son grandes penas.
Las que se callan y se llevan dentro
son las verdaderas.

Rosita y mosquetas,
claveles y nardos,
en sus andares la mi compañera
los va derramando.

Negra está la noche,
sin luna ni estrellas...
A mí me alumbraban los ojitos garzos
de mi compañera.

La persona tuya
es lo que yo quiero.
Tenerte en mis brazos, mirarme en tus ojos
y comerte a besos.

En los caracoles,
mare, de tu pelo,
se me ha enredado el alma, y la vida,
y el entendimiento.

Horas de alegría
son las que se van...
Que las de pena se quedan y duran
una eternidad.

Cuéntame tus penas,
te diré las mías...
Verás cómo al rato de que estemos juntos
todas se te olvidan.

Estando contigo,
que vengan fatigas...
Puñalaítas me dieran de muerte,
no las sentiría.

La quiero, la quiero,
¿qué le voy a hacer?...
Para apartarla de mi pensamiento
no tengo poder.

¡Vaya un amaguito
tan dulce que tienen
los ojos azules que tanto me gustan...,
que tanto me ofenden!

Sin verte de día,
serrana, no vivo...
Y luego, a la noche, me quitas el sueño,
o sueño contigo.

Compañera mía,
tan grande es mi pena
que el sol, cuando sale, con tanta alegría
no me la consuela.

¡Mírame, gitana,
mírame, por Dios!
Con la limosna de tus ojos negros
me alimento yo.

Manuel Machado y Ruiz (n. Seville, 29 de agosto de 1874; m. Madrid, 19 de janeiro de 1947)

2016-08-28

Jogos de Sombras - Hermes Fontes

Sempre que me procuro e não me encontro em mim,
pois há pedaços do meu ser que andam dispersos
nas sombras do jardim,
nos silêncios da noite,
nas músicas do mar,
e sinto os olhos, sob as pálpebras, imersos
nesta serena unção crepuscular
que lhes prolonga o trágico tresnoite
da vigília sem fim,
abro meu coração, como um jardim,
e desfolho a corola dos meus versos,
faz-me lembrar a alma que esteve em mim,
e que, um dia, perdi e vivo a procurar
nos silêncios da noite,
nas sombras do jardim,
na música do mar...


Hermes Floro Bartolomeu Martins de Araújo Fontes (n. em Boquim, Sergipe, a 28 de agosto de 1888; m. no Rio de Janeiro (suicidio) a 25 de dezembro de 1930).

2016-08-26

POEMA DO AMOR SEM EXAGERO - Joaquim Cardozo

Corpo (autor desconhecido). PS: a modelo também não conheço

Eu não te quero aqui por muitos anos
Nem por muitos meses ou semanas,
Nem mesmo desejo que passes no meu leito
As horas extensas de uma noite.
Para quê tanto Corpo!
Mas ficaria contente se me desses
Por instantes apenas e bastantes
A nudez longínqua e de pérola
Do teu corpo de nuvem.


Joaquim Maria Moreira Cardozo (n. no Recife, 26 de agosto de 1897; m. em Olinda a 4 de novembro de 1978).



2016-08-25

Tentação - António da Cunha Correia Júnior


Fico. Não vou. Não sigo a tua esteira
Pois sinto-me senhor do meu destino.
(Ah como, quando eu quero, me domino!)
E bem sei que passaste à minha beira.

Que importa que eu ficasse a tarde inteira
A pensar no teu vulto feminino?
Mas não fui, não corri, em desatino,
Atrás de quem fugia tão ligeira.

E perdi-te na curva do caminho...
E, como dantes, vê, fiquei sozinho
Seguiram-te meus olhos um momento.

E foi tudo. Fiquei. Não dei um passo...
E contudo não sei o mal que faço
Em te guardar, assim, no pensamento.

António da Cunha Correia Júnior nasceu na Matriz da Horta, Açores, a 25 de agosto de 1912, faleceu no Rio de Janeiro a 18 de março de 1992

2016-08-24

O Mar - Jorge Luís Borges




Antes que o sonho (ou o terror) tecera
mitologias e cosmogonias,
antes que o tempo se cunhasse em dias,
o mar, sempre o mar, já estava e era.
Quem é o mar? Quem é o violento
e antigo ser que destrói os pilares
da terra, e é só um e muitos mares,
e abismo e resplendor e azar e vento?
Quem o olha vê-o pela vez primeira,
sempre. Com o assombro tal que as coisas
elementares deixam, as formosas
tardes, a lua, o fogo da fogueira.
Quem é o mar, quem sou? Sei-o no dia
que virá logo após a minha agonia.

Trad. José Bento
in Rosa do Mundo 2001 Poemas para o Futuro, Porto 2001, Assírio & Alvim

Jorge Luis Borges (n. em Buenos Aires, Argentina, a 24 de agosto de 1899, m. em Genebra a 14 de junho de 1986)

2016-08-23

Noite - Menotti del Pichia

Imagem daqui

As casas fecham as pálpebras das janelas e dormem.
Todos os rumores são postos em surdina,
todas as luzes se apagam.

Há um grande aparato de câmara funerária
na paisagem do mundo.

Os homens ficam rígidos,
tomam a posição horizontal
e ensaiam o próprio cadáver.

Cada leito é a maquete de um túmulo.
Cada sono um ensaio de morte.

No cemitério da treva
tudo morre provisoriamente

Paulo Menotti del Picchia (nasceu em São Paulo, SP, em 20 de março de 1892, e faleceu na mesma cidade em 23 de agosto de 1988).

Ler do mesmo autor:
Germinal I; Chuva de PedraPiedosa Mentira e Clássico.

2016-08-22

Consolo - Lygia Menezes

Jamais chores, mulher, jamais lamentes
a dor profunda que te punge a alma.
Não digas a ninguém o mal que sentes,
sofres em silencio e tua dor se acalma.

Nas horas longas de tormento infindo
não te deixes vencer. Mulher, canta,
disfarça sempre a tua dor sorrindo
e finge que o tormento não te espanta.

Jamais recues no meio da jornada,
prossegue até o fim do teu caminho.
— Para colher a rosa aveludada,
a mão às vezes fere-se no espinho.

Publicada no jornal Correio da Manhã, RJ, 19/09/1952.

Lygia Menezes nascida em Maceió a 22 de agosto de 1913; m. ?????

2016-08-21

Há palavras que nos beijam - Alexandre O'Neill (no 30º aniversário do desaparecimento do poeta, com voz de Mariza)

...


Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca,
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto,
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído,
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.


Alexandre Manuel Vahía de Castro O'Neill (n. em Lisboa a 19 de dezembro de 1924; m. em 21 de agosto de 1986).

2016-08-20

Tarde de Agosto - Matias de Lima


Domingo. O sol molesta,
Incendeia o horizonte.
Tocam sinos à festa
Em S. Pedro do Monte.

Num ramo de giesta
Canta um melro defronte.
É poeta: manifesta
O estro de Anacreonte.

Nos fios telefónicos
Andorinhas baloiçam...
Outras cruzam pelo ar.

E risonhos, harmónicos,
Os sinos de há pouco – oiçam! –
Repicam sem cessar.


Matias Lima (Porto, 20 de agosto de 1885 - Porto, 9 de março de 1970)

2016-08-19

Alma ausente - Federico Garcia Lorca

No te conoce el toro ni la higuera,
ni caballos ni hormigas de tu casa.
No te conoce tu recuerdo mudo
porque te has muerto para siempre.

No te conoce el lomo de la piedra,
ni el raso negro donde te destrozas.
No te conoce tu recuerdo mudo
porque te has muerto para siempre.

El otoño vendrá con caracolas,
uva de niebla y montes agrupados,
pero nadie querrá mirar tus ojos
porque te has muerto para siempre.

Porque te has muerto para siempre,
como todos los muertos de la Tierra,
como todos los muertos que se olvidan
en un montón de perros apagados.

No te conoce nadie. No. Pero yo te canto.
Yo canto para luego tu perfil y tu gracia.
La madurez insigne de tu conocimiento.
Tu apetencia de muerte y el gusto de su boca.

La tristeza que tuvo tu valiente alegría.
Tardará mucho tiempo en nacer, si es que nace,
un andaluz tan claro, tan rico de aventura.
Yo canto su elegancia con palabras que gimen
y recuerdo una brisa triste por los olivos.


Federico García Lorca (Fuente Vaqueros, 5 de junho de 1898 — Granada, 19 de agosto de 1936)
Ouvir na voz de Ana Belen

...


2016-08-18

ESTE É O DOM DO MITO QUE PROCURAS - Osmar Pisani



Tua medida devora calendários
como máscaras na passagem do equinócio
e no silêncio imolado
instalas a permanente existência da raiz
como o sol capaz de comover-se
em sua inteira rota de mistérios.
Cresce a árvore de sonhos,
mas vagaroso é o rumor
da seta nesta manhã de sibila.

Osmar Pisani nasceu em Gaspar, Santa Catarina, em 18 de agosto de 1936; faleceu em 7 de março de 2007.

2016-08-17

Ideal - Fagundes Varela

Não és tu quem eu amo, não és!
Nem Teresa também, nem Ciprina;
Nem Mercedes a loira, nem mesmo
A travessa e gentil Valentina.

Quem eu amo te digo, está longe;
Lá nas terras do império chinês,
Num palácio de louça vermelha
Sobre um trono de azul japonês.

Tem a cútis mais fina e brilhante
Que as bandejas de cobre luzido;
Uns olhinhos de amêndoa, voltados,
Um nariz pequenino e torcido.

Tem uns pés... oh! que pés, Santo Deus!
Mais mimosos que uns pés de criança,
Uma trança de seda e tão longa
Que a barriga das pernas alcança.

Não és tu quem eu amo, nem Laura,
Nem Mercedes, nem Lúcia, já vês;
A mulher que minh'alma idolatra
É princesa do império chinês.

Luís Nicolau Fagundes Varela nasceu em Santa Rita do Rio Claro (RJ) a 17 de Agosto de 1841 e faleceu em Niterói (RJ) a 18 de Fevereiro de 1875.

2016-08-16

CARTA AO OCEANO - António Nobre

Ó Grande Alma trágica e sombria!
Quando hás-de enfim, na campa repousar?
Após a luta persistente e fria,
Ah, quanto é bom morrer... dormir... sonhar...

Estrebuchas nas ânsias da agonia,
Há mil e tantos séculos, ó Mar!
E nunca cessas de lutar, um dia,
E nunca morres, Alma singular!

Mas, ao chegar teu último momento,
Quando zurzir nos ares a metralha
Da tua alma desfraldada ao vento:

Envolto nessa líquida mortalha,
Tu cairás prostrado, sem alento,
Como um guerreiro ao fim d'uma batalha!

Poesia Completa, 1867-1900
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2000

António Nobre (n. 16 de agosto de 1867, Porto ; m. 18 de março de 1900 Porto (Foz do Douro))

2016-08-15

Opus ∞ +1 - Fiama Hasse Pais Brandão

Title Deutsch: Stilleben mit Flasche und Apfelkorb
Date 1890-1894; Medium Oil on canvas; 62 × 79 cm
Art Institute, Chicago

Paul Cézanne (19 Jan 1839; 23 Oct 1906)


Folhas novas em que a chuva
não penetra mas esvoaça. A dis
tância da chuva pela qual eu
posso deduzir da paisagem
que estou a imaginar a obra.
A separação em que parte
de mim reflui da nova arte
para a antiga vida decalca
da para sempre por alguns versos.


in Poemas Portugueses Antologia da Poesia Portuguesa do Séc. XIII ao Séc. XXI

Fiama Hasse Pais Brandão (Lisboa, 15 de gosto de 1938 — Lisboa, 19 de janeiro de 2007)

2016-08-14

A Mulher Grávida - Jaime Cortesão

Eu sou a mulher pejada.
Minha boca apetecida,
Com outra boca colada,
Deu beijos para dar Vida.

Em mim é santo o Desejo,
É santo por ser fecundo:
Puz toda a alma num beijo,
E fui a origem do mundo.

Olhai: caminho por entre
Todo o povo sem receio,
Pois trago um filho no ventre
E uma fonte em cada seio.

Quem sentir vida tam alta
Não se furte, não a esconda;
Vêde-a… em meu ventre se exalta,
Sobe toda numa onda.

Um filho todas as vezes,
Que é de mãe enternecida,
Trá-lo o ventre nove meses
E o coração toda a vida.

Que imenso poder eu tenho
- Dar vida por ser o amor;
Não há poeta tamanho,
Nem génio mais criador!

E por meu ventre sagrado
Vou falar: escutai bem.
Fala o verbo revelado
No meu instinto de mãe.

Eu vejo para além da vista,
Ouço pra além dos ouvidos:
Oh! Que terra nunca vista,
Que heróis jamais concebidos!

Ouço em mim vozes estranhas,
A minha Alma deita luz…
Trago nas minhas entranhas
Outro menino Jesus.

Meu Filho amostra-me a face,
Faze-te Aurora nascida,
Embora a luz me queimasse,
Inda que eu perdesse a Vida.

Sou o Céu da Madrugada,
A minha carne anda em brilho;
Sinto-me ébria de Alvorada
Rompe o Sol: nasce o meu filho!


Jaime Zuzarte Cortesão (n. Ançã, Cantanhede, 29 de Abril de 1884 — m. Lisboa, 14 de Agosto de 1960)

2016-08-13

Para que vim eu ao mundo - Gonçalves de Magalhães

Do céu as estrelas
Acaso no brilho
São todas iguais?
São umas mais belas,
E outras parecem
Funéreos fanais.
Assim são os fados
Dos tristes mortais.

Cada qual tem sua sorte;
Um foi para a dor gerado,
E outro pela ventura
Ao nascer foi embalado.

Quanto mais penso, mais creio
Neste mistério profundo;
E a mim mesmo então pergunto:
Para que vim eu ao mundo?

Como resposta esperando,
Escuto silencioso;
No coração, que palpita,
Murmura um som lutuoso.

Soa essa voz em meu peito
Como em caverna profunda,
Como um suspiro exalado
Pela vaga gemebunda.

Para a dor, me diz, nasceste;
Para a dor, para o tormento;
Teus males só terão termo
Co'o teu último momento.

Sofrer, tal é meu fado! — Eu me resigno.
E que hei de fazer? Curta é a vida...
E quem me tolhe qu'eu de todo a encurte?
Não serei livre de lançar por terra
Um fardo que me acurva, um fardo inútil?
É a vida para uns néctar suave,
Tóxico é para mim;... devo tragá-lo?
Acaso Deus me disse
A ti toca sofrer por mil que gozam.

Mas eu blasfemo, oh céus! Que voz me grita:
"Mortal, olha o que fazes! Contra a vida
Não ouses atentar. Quem vida deu-te
Só quando lhe aprouver tirar-ta pode."

Oh meu Deus! compaixão; minha alma humilde
Graça implora da sua insana idéia.

Rir, ou chorar, eis só o que o homem sabe;
Se não canta, blasfema!

A sorte choremos,
Que avessa nos é;
Mas não blasfememos,
Vivamos co'a Fé.

Qual a esponja de líquido embebida,
De perpétua, letal melancolia
Pejado tenho o peito;
Minha alma amortecida,
E como que em seu túmulo encerrada,
Só pela dor à vida é revocada.

Oh minha alma, tu és como a lanterna
Do cemitério,
Que ante o altar, sobre um esquife solta
Palor funéreo.

A sorte choremos,
Que avessa nos é;
Mas não blasfememos,
Vivamos co'a Fé.

Oh prazer! Oh doçura da existência!
Meta tão desejada
De todos os mortais, para quem inda
Brilha no céu a estrela da esperança.
Oh benigno sol, que a vida aqueces,
Para mim te eclipsaste!
E se às vezes fosfórico lampejas,
Quando eu, afeito à dor, não te desejo,
É para exacerbar meu sofrimento.
Ah! nem me afaga da esperança o riso,
Nem me consola amor; tudo me foge.

A sorte choremos,
Que avessa nos é;
Mas não blasfememos,
Vivamos co'a Fé.


Domingos José Gonçalves de Magalhães (Rio de Janeiro, RJ, 13 de agosto de 1811 — Roma, Itália, 10 de julho de 1882)

2016-08-12

Súplica - Miguel Torga

Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim.

Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.

Miguel Torga (Adolfo Correia da Rocha) (n. em São Martinho de Anta, Sabrosa, Trás-os-Montes, a 12 de agosto de 1907 ; m. em Coimbra a 17 de janeiro de 1995).

2016-08-11

Reticenciamento - Evandro Gomes


Quanto mais eu me concluo
Muito mais eu me improviso.
Resgato-me do dia de ontem
E adio-me para outro século
E por lá invento meu próprio tempo
Num eterno reticenciamento de vida e solidão.

Evandro Marques De Souza Gomes, nascido em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, em 11 de agosto de 1958

2016-08-10

Se Se Morre de Amor! - Gonçalves Dias

Meere und Berge und Horizonte zwischen den
Liebenden – aber die Seelen versetzen sich aus dem
staubigen Kerker und treffen sich im Paradiese der
Liebe.
SCHILLER. Die Rãuber



Se se morre de amor! – Não, não se morre,
Quando é fascinação que nos surpreende
De ruidoso sarau entre os festejos;
Quando luzes, calor, orquestra e flores
Assomos de prazer nos raiam n’alma,
Que embelezada e solta em tal ambiente
No que ouve, e no que vê prazer alcança!
Simpáticas feições, cintura breve,
Graciosa postura, porte airoso,
Uma fita, uma flor entre os cabelos,
Um quê mal definido, acaso podem
Num engano d’amor arrebatar-nos.
Mas isso amor é; isso é delírio,
Devaneio, ilusão, que se esvaece
Ao som final da orquestra, ao derradeiro
Clarão, que as luzes no morrer despedem:
Se outro nome lhe dão, se amor o chamam,
D’amor igual ninguém sucumbe à perda.

Amor é vida; é ter constantemente
Alma, sentidos, coração – abertos
Ao grande, ao belo; é ser capaz d’extremos,
D’altas virtudes, té capaz de crimes!
Compr’ender o infinito, a imensidade,
E a natureza e Deus; gostar dos campos,
D’aves, flores, murmúrios solitários;
Buscar tristeza, a soledade, o ermo,
E ter o coração em riso e festa;
E à branda festa, ao riso da nossa alma
Fontes de pranto intercalar sem custo;
Conhecer o prazer e a desventura
No mesmo tempo, e ser no mesmo ponto
O ditoso, o misérrimo dos entes:
Isso é amor, e desse amor se morre!

Amar, e não saber, não ter coragem
Para dizer que amor que em nós sentimos;
Temer qu’olhos profanos nos devassem
O templo, onde a melhor porção da vida
Se concentra; onde avaros recatamos
Essa fonte de amor, esses tesouros
Inesgotáveis, d’ilusões floridas;
Sentir, sem que se veja, a quem se adora
Compr’ender, sem lhe ouvir, seus pensamentos,
Segui-la, sem poder fitar seus olhos,
Amá-la, sem ousar dizer que amamos,
E, temendo roçar os seus vestidos,
Arder por afogá-la em mil abraços:
Isso é amor, e desse amor se morre!

Se tal paixão enfim transborda,
Se tem na terra o galardão devido
Em recíproco afeto; e unidas, uma,
Dois seres, duas vidas se procuram,
Entendem-se, confundem-se e penetram
Juntas – em puro céu d’êxtasis puros:
Se logo a mão do fado as torna estranhas,
Se os duplica e separa, quando unidos
A mesma vida circulava em ambos;

Que será do que fica, e do que longe
Serve às borrascas de ludibrio e escárnio?
Pode o raio num píncaro caindo,
Torná-lo dois, e o mar correr entre ambos;
Pode rachar o tronco levantado
E dois cimos depois verem-se erguidos,
Sinais mostrando da aliança antiga;
Dois corações porém, que juntos batem,
Que juntos vivem, – se os separam, morrem;
Ou se entre o próprio estrago inda vegetam,
Se aparência de vida, em mal, conservam,
Ânsias cruas resumem do proscrito,
Que busca achar no berço a sepultura!


Esse, que sobrevive a própria ruína,
Ao seu viver do coração, – às gratas
Ilusões, quando em leito solitário,
Entre as sombras da noite, em larga insônia,
Devaneiando, a futurar venturas,
Mostra-se e brinca a apetecida imagem;
Esse, que à dor tamanha não sucumbe,
Inveja a quem na sepultura encontra
Dos males seus o desejado termo!

Antônio Gonçalves Dias (nasceu no dia 10 de agosto de 1823, nos arredores de Caxias, no Maranhão. Faleceu ao regressar de uma viagem à Europa, no naufrágio do "Ville de Boulogne", já próximo do Maranhão, a 3 de novembro de 1864).

2016-08-09

Duramente aprendemos - Eduardo Pitta

Duramente aprendemos.
O caos e a memória
delida.
Palavras poucas, e gastas.

in Desobediência, Poemas Escolhidos
Publicações Dom Quixote. Lisboa 2011

Eduardo Pitta (nasceu em Lourenço Marques, atual Maputo, 9 de agosto de 1949)

2016-08-08

Poema quase apostólico - Ruy Belo



Está sereno o poeta
Desprende-se-lhe dos ombros e cai
depois em pregas por ele abaixo a manhã
Não pertencem ao dia os gestos que ele tem
não morrerão na noite seus assombrosos passos
Dizem que ele volta a pôr em movimento a roda
de crianças de atitudes desmedidas
que o vento varreu e parque algum queria
E abre os braços para deixar cair na cidade
um ano favorável ao senhor
E põe o rosto do senhor por trás das suas palavras
Elas decerto o hão-de dar a quem as demandar

Ruy de Moura Belo (n. em S. João da Ribeira, Rio Maior, em 27 de fevereiro de 1933; m. em Lisboa, a 8 de agosto de 1978).

2016-08-06

Crepúsculo de Agosto - Albano Martins



Dos amigos que perdi
não falo. Sei
que estamos em agosto, mês
dos remos escaldantes, sei
que há lodo sob as algas,
sob a pele. Oblíqua,
sei também, a sombra
cai sobre as oliveiras. É
tempo de içares
tuas velas, de ergueres
teus guindastes
junto ao rio. Dis
poníveis estão
as luzes; preparadas,
ermas estão as águas.


Albano Dias Martins (nasceu no Fundão em 6 de agosto de 1930)

2016-08-05

AUTORRETRATO - Antonio Miranda


Às vezes sou um, às vezes sou outro:
todo mundo é assim, ou é assado.

Eu, sem fugir à regra, transgredi.

Fui, ao mesmo tempo, eu e o outro
—um para dentro, outro para os outros
mas, confesso, sou igual a todos
num disfarce que é a outra face
de uma falsa dicotomia.

Maniqueísmos? Planger ou prazer?

Nem religioso eu sou, nem romântico,
muito menos ideólogo ou assumido
de qualquer coisa, na minha infidelidade,
falta de fé. E, no entanto, obstinado
quase otimista porque realista
- na reversão da contradição.

Sou um pouco o Orlando da Virginia Woolf
o Patinho Feio disfarçado de Dorian Gray
fui herói de histórias em quadrinhos
namorei estrelas de Hollywood ou,
mais terrestre, da Vera Cruz e da Atlântida
ganhei o Prêmio Nobel, a Comenda Maior
da Confraria dos Poetas Ególatras e Suicidas.

Li uma montanha inexpugnável de livros
tentei reescrevê-los, sem qualquer humildade
subi, letra a letra, degraus estonteantes
delirantes, construindo arquiteturas etéreas
no círculo vicioso das virtualidades banais.

Deveria rasgar todas as frases deletérias
todas as imprecações, todas as contrafações
verbais e venais que produzi – lixo execrável.

Deveria envergonhar-me de minha falsa polidez
de minha insensatez, minhas impropriedades
mas sempre tenho a firmeza dos inseguros
enquanto os crédulos, os convictos
não resistem às próprias contradições.

Transgredi mas, juro, apenas verbalmente.
No mais, sou casto na minha perversidade.
Sou beato na minha mais íntima heresia.
E mais despretensioso do que a minha soberba.

Quero dizer: no fundo sou inseguro e fiel
a princípios de que nem participo.

Deu para entender? Nem Deus pressente
aquela dor que finjo que deveras sinto
ao plagiar aquele poeta que nem mesmo venero.

Vou na contra-mão da ordem estabelecida
mas, disfarçando, eu vou é de costas
e não estou sozinho, participando assim
de uma nova modalidade olímpica ou acadêmica.

Os que são de Bacabal que me sigam
os que usam botas de ferro, brinco de osso
que rezam constrangidos, os desamados
os sem-biblioteca, os sem sentido.

Extraído daqui

Antônio Lisboa Carvalho de Miranda (Bacabal, Maranhão, 5 de agosto de 1940)

2016-08-04

O Infante de Sagres - Delfim Guimarães

Tarefa gigantesca e vasta empresa
A que toda a existência consagraste,
Tão conforme à divisa que adoptaste,
Filho excelso da terra portuguesa!

O tenebroso mar tu dominaste,
Numa campanha audaz, com a firmeza
Da tua ardente fé, a alma acesa
No sonho generoso que sonhaste.

Os mistérios do ignoto desvendando,
A nossa terra foste acrescentando
Com novas ilhas, férteis regiões...

Graças ao teu esforço inteligente,
Um obscuro rincão de pobre gente
Tornou-se o berço ilustre de Camões!

Delfim de Brito Monteiro Guimarães (n. no Porto a 4 de agosto de 1872, m. na Amadora a 6 de julho de 1933)

2016-08-03

Momento - Políbio Gomes dos Santos

Não sei qual seja agora o meu querer:
Se ver-te para não ter mais saudades
Se as saudades de te ver,
Que ver-te a dois passos me faz desejar-te
Mais perto
E mais perto
Esmagada comigo
Num rito brutal ─ os dois sangues trocados!

Mas eu sei que ficaremos
Separados
Como valvas de marisco
No cisco da praia!
─ Duas peças do engenho de Deus
Avariado,
Enquanto o Homem não descobre o Mundo.


Políbio Gomes dos Santos (n. Ansião, 7 de Agosto de 1911 — m. Ansião, 3 de Agosto de 1939)

2016-08-02

O POETA E O TEMPO - Félix Pacheco

São sempre iguais na idade os deuses e as quimeras.
O poeta é um deus também. Pertence-lhe o infinito.
Perdido na amplidão sempiterna do mito,
Fica de todo alheio ao desfilar das eras.

Sucumbam gerações no círculo restrito
E passem, no vaivém sem fim, as primaveras.
O poeta há de viver, para além das esferas,
Esquecido e imortal, todo entregue ao seu rito.

Eclíticas de sóis, movimentos dos astros,
Outonos e verões correndo atrás de invernos,
Tudo isso diz que o mundo anda também de rastros.

A própria formosura é vã nesses infernos:
O sepulcro dispersa em pó os alabastros.
Unicamente Deus e o Poeta são eternos.

Poema extraído do sítio da Academia Brasileira de Letras

José Félix Alves Pacheco, nasceu em Teresina, PI, em 2 de agosto de 1879, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 6 de dezembro de 1935.

2016-08-01

O Rosto Evidente - António Rebordão Navarro

Sempre o rosto da amada é transparente,
por ele passa o mundo, passa gente,
vão, por si sós, desde a boca do Verão
aos cabelos do Inverno
as árvores mais claras e as mais fortes.

Sempre o rosto da amada é infinito,
uma escada que sobe como um grito
e nunca pára, suspenso entre o dia e a noite,
no violento espaço que ocupam duas mãos,
todos os frutos, os peixes que navegam com o sol,
os dragões soltos pela Primavera e mesmo o filho
que um dia partiu e volta agora,
todo o corpo mordido
pelas vorazes pulgas da miséria.

Sempre o rosto da amada é solidário
ao tempo e, rico e vário,
vai do vermelho ao rosa,
repousa no azul, salta no mar.
É varado de balas na Bolívia,
bombardeado no Vietname,
feito radiografia no Biafra.
Fiel é no entanto o rosto à vida
e tanto que palpita, ri e chora.


in «366 poemas que falam de amor»,
selecção de Vasco Graça Moura

António Augusto Rebordão e Cunha Navarro nasceu no Porto em 1 de agosto de 1933, faleceu em abril de 2015.