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2015-03-31

Silêncio - Octavio Paz

Assim como do fundo da música
brota uma nota
que enquanto vibra cresce e se adelgaça
até que noutra música emudece,
brota do fundo do silêncio
outro silêncio, aguda torre, espada,
e sobe e cresce e nos suspende
e enquanto sobe caem
recordações, esperanças,
as pequenas mentiras e as grandes,
e queremos gritar e na garganta
o grito se desvanece:
desembocamos no silêncio
onde os silêncios emudecem.


in "Liberdade sob Palavra"
Tradução de Luis Pignatelli

Octavio Paz Lozano (Cidade do México, 31 de março de 1914 — Cidade do México, 19 de abril de 1998)

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2015-03-30

O Retrato? - Adelino Fontoura

Vou fazer-te, leitor, o seu retrato:
— É pálida, gentil, encantadora,
tem a doce atração fascinadora
das cristalinas águas dum regato.

O chic do dizer nervoso inato
tive-o voz vibrante, sedutora,
brilham nessa loquaz criança loura
a graça, a distinção, o fino trato.

É olhá-la uma vez e sentir presa
a vontade ao seu todo de burguesa
que conversa em francês e sabe história.

Mas o reverso da medalha espanta.
Tangendo o violão, lânguida, canta:
— Quis debalde varrer-te da memória!


Extraído de O Verso e o Silêncio de Adelino Fontoura,
José Neres, Jheisse Lima Coelho e Viviane Ferreira. São Luís JNEdições, 2011

Adelino da Fontoura Chaves (n. em Axixá, Maranhão, Brasil a 30 Mar. 1859* – m. em Lisboa, Portugal a 02 Maio 1884)
* algumas fontes indicam como data de nascimento a de 30 de março de 1855.

Ler do mesmo autor:
Atração e Repulsa
Celeste
Fruto Proibido
Página Desconhecida
Jornada

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um dizer ainda puro - Vasco Gato


imagino que sobre nós virá um céu
de espuma e que, de sol em sol,
uma nova língua nos fará dizer
o que a poeira da nossa boca adiada
soterrou já para lá da mão possível
onde cinzentos abandonamos a flor.

dizes: põe nos meus os teus dedos
e passemos os séculos sem rosto,
apaguemos de nossas casas o barulho
do tempo que ardeu sem luz.
sim, cria comigo esse silêncio
que nos faz nus e em nós acende
o lume das árvores de fruto.

diz-me que há ainda versos por escrever,
que sobra no mundo um dizer ainda puro.

in Um Mover de Mão, Assírio & Alvim, 2000.

Vasco Gato nasceu em Lisboa a 30 de março de 1978

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2015-03-27

A PRIMEIRA VEZ QUE ENTENDI - Affonso Romano de Sant'Anna


A primeira vez que entendi do mundo
alguma coisa
foi quando na infância
cortei o rabo de uma lagartixa
e ele continuou se mexendo.

De lá pra cá
fui percebendo que as coisas permanecem
vivas e tortas
que o amor não acaba assim
que é difícil extirpar o mal pela raiz.

A segunda vez que entendi do mundo
alguma coisa
foi quando na adolescência me arrancaram
do lado esquerdo três certezas
e eu tive que seguir em frente.

De lá pra cá
aprendi a achar no escuro o rumo
e sou capaz de decifrar mensagens
seja nas nuvens
ou no grafite de qualquer muro.

Affonso Romano de Sant'Anna (Belo Horizonte, 27 de março de 1937)

Ler do mesmo autor, neste blog:
Cilada Verbal
O Homem e a Morte
Silêncio Amoroso
Arte-final
Hino da Canalha

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2015-03-26

Apólogo - A Sereia, o Crocodilo e o Macaco

Disputavam fortemente
Nas frescas margens do Nilo,
Sobre o manejo do engano,
A Sereia e o Crocodilo

Jactava-se este vil monstro
Matar os homens, chorando;
Vangloriava-se a Sereia
Matando os homens, cantando.

"Eu (dizia o Crocodilo)
Afecto um chorar mavioso;
Depois despedaço - rindo -
A quem me acode piedoso"

"Pois eu não; com mais destreza
Sonora me faço ouvir:
(Disse a Sereia) - e nas ondas
Faço os nautas submergir"

Um macaco, que enroscado
Estava numa palmeira,
Ouviu atento a conversa
Da jactância carniceira:

Mas - não podendo sofrer
A tal questão depravada -
Deu, do ramo onde pousava,
Uma tremenda apupada.

Eis nisto as feras - alçando
os olhos e vendo o Môno
Fazendo várias momices
Mui repimpado eu seu trono -

Lhe disseram: "Já que ouviste
Do nosso engano os ardis,
Sê desta nossa contenda
Hoje, ó Macaco, o juiz.

Nós nos louvamos em ti,
Como as Deusas se louvarão
Em Paris, quando do pômo
De oiro a posse disputarão.

Decide prudente, e recto
Qual de nós é mais tirano;
Qual de nós deve empunhar
O ceptro do falso engano"

O Macaco, assaz manhoso,
E assaz no mundo experiente
Dos monstros da Natureza
Sentenciou de repente:

"Tenho ouvido a vossa teima
Podeis casar sem dispensa:
Ambos reunis o engano
Da mulher - eis a sentença!"

A decisão do Macaco
Nesta fábula nos diz
Que a mulher reune em si
Dos dois monstros os ardis.

A mulher engana - e mata -
Quando se põe a chorar
A mulher engana - e mata -
Quando se põe a cantar.

Homens, fazei-vos Macacos;
Senão - ficareis perdidos:
Ou a mulher cante ou chore,
Tapai os vossos ouvidos.

in O moribundo Cysne do Vouga, Collecção D'algumas peças mais importantes extrahida das Obras poéticas do Snr. Francisco Joaquim Bingre nos últimos momentos da sua vida; Porto, Typographia Commercial,  1850


Francisco Joaquim Bingre nasceu em S. Tomé de Canelas, Estarreja no dia 9 de julho de 1763 e morreu em Mira a 26 de março de 1856).

Ler do mesmo autor, neste blog:
Soneto de Despedida
Paciência, um Sofrimento Voluntário
Retrospectiva
Meus Versos
A Camões





















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2015-03-25

SOB OS RAMOS - Pedro Kilkerry



É no Estio. A alma, aqui, vai-me sonora,
No meu cavalo — sob a loira poeira
Que chove o sol — e vai-me a vida inteira
No meu cavalo, pela estrada a fora.

Ai! desta em que te escrevo alta mangueira
Sob a copada verde a gente mora.
E em vindo a noite, acende-se a fogueira
Que se fez cinza de fogueira agora.

Passa-me a vida pelo campo... E a vida
Levo-a cantando, pássaros no seio,
Qual se os levasse a minha mocidade...

Cada ilusão floresce renascida;
Flora, renasces ao primeiro anseio
Do teu amor... nas asas da Saudade!

 Pedro Militão Kilkerry (n. em Salvador (BA), a 10 de março de 1885: m. em 25 de março 1917)

Ler do mesmo autor:
Essa que paira em meus sonhos
Ritmo Eterno
Folhas da Alma
É o Silêncio


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2015-03-24

Se houvesse degraus na terra... - Herberto Hélder (falecido ontem...)

A fiery red Sun daqui

Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu,
eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia.
No céu podia tecer uma nuvem toda negra.
E que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas,
e à porta do meu amor o ouro se acumulasse.
Beijei uma boca vermelha e a minha boca tingiu-se,
levei um lenço à boca e o lenço fez-se vermelho.
Fui lavá-lo na ribeira e a água tornou-se rubra,
e a fímbria do mar, e o meio do mar,
e vermelhas se volveram as asas da águia
que desceu para beber,
e metade do sol e a lua inteira se tornaram vermelhas.
Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo.
Uma maçã, uma mantilha de ouro e uma espada de prata.
Correram os rapazes à procura da espada,
e as raparigas correram à procura da mantilha,
e correram, correram as crianças à procura da maçã.

Herberto Hélder, Luís Bernardes de Oliveira (n. Funchal, Madeira em 23 de novembro de 1929, m. Cascais, 23 de março de 2015)

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DO MEU TEMPO... - Olegário Mariano

Quando eu era menino e tinha cheia
A alma de sonhos bons e, fugidio,
Como a abelha que voa da colmeia,
Andava a errar no canavial bravio;

Quando em noites de junho o luar macio
Punha um lençol de rendas sobre a areia,
Tiritava de medo ouvindo o pio
Da coruja mais lúgubre da aldeia.

Feliz! Bendita essa primeira idade!
Andava como quem anda sonhando
De olhos abertos, com a felicidade.

Dormia tarde e enquanto dormia,
Mamãe rezava o padre-nosso e quando
Me mandava rezar eu não sabia.


(in Sonetos, 1912)

Olegário Mariano Carneiro da Cunha (nasceu na cidade de Recife, Pernambuco, a 24 de março de 1889. Faleceu no Rio de Janeiro a 28 de novembro de 1958).

Ler do mesmo autor:
Teia de Aranha
Arco-íris
O Meu Retrato
A Canção da Saudade
O Enamorado das Rosas
Almas Irmãs
O Conselho das Árvores
O Enterro da Cigarra

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2015-03-23

Mar Alto - Helio Pellegrino

Esta água é todas as águas,
sem porto, nome ou naufrágio.
Rendada de espuma ao vento,
sem dor nem contentamento.

Esta água — lugar nenhum —
é perdição sem loucura.
Nela se dissolvem mágoa,
memória, tempo, aventura.

Sem lei nem rei, sem fronteiras,
além de verbo e silêncio,
esta é a pátria procurada:
incêndio de tudo — nada.


Hélio Pellegrino (n. em Belo Horizonte (MG) em 05 jan. 1924; m. 23 mar. 1988)

Ler do mesmo autor:
Plenitude
Catacumbas

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2015-03-22

E A RIMA SUMIU - Ivan Justen Santana

ela entrou pela janela do banheiro
sei lá se já era janeiro
talvez fosse quase dezembro
essa rima é óbvio que não lembro

ela veio fugindo da métrica
sua velha madrasta frígida e tétrica
vestida de pânico que viu na rua
aquela era uma rima a meu ver nua

eu todo estupefato e ela logo ali
de fato no ato não a reconheci
apesar dos dois bicos dos seios duros
a rima não tirou os óculos escuros

no que fui agarrar senti só o vazio
e em vez de sumir ela desapareceu


Ivan Justen Santana nasceu em Curitiba em 22/03/1973

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2015-03-20

Na tarde erramos - Reinaldo Ferreira


Na tarde erramos,
Nós, tu e eu,
Mas três.
Tão sós que vamos
E não sou eu
Quem vês.

Discreto calo,
P'ra que o meu senso
Louves;
Em vão não falo,
Tanto o que eu penso
Ouves.

Melhor me fora
Que a outro assim
Levasses
E, longe embora,
Somente em mim
Pensasses.

Reinaldo Edgar de Azevedo e Silva Ferreira (n. em Barcelona, a 20 de março de 1922; m. em Moçambique a 30 de junho de 1959).

Ler do mesmo autor, neste blog:
Da margem esquerda da vida
Rosie
Vivo na esperança de um gesto
Quem dorme à noite comigo
Meu Quase Sexto Sentido
Uma Casa Portuguesa
Passemos Tu e Eu Devagarinho
Duma outra infância, inventada

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2015-03-19

Livre - Cruz e Sousa


Livre! Ser livre da matéria escrava,
arrancar os grilhões que nos flagelam
e livre penetrar nos Dons que selam
a alma e lhe emprestam toda a etérea lava.

Livre da humana, da terrestre bava
dos corações daninhos que regelam,
quando os nossos sentidos se rebelam
contra a Infâmia bifronte que deprava.

Livre! bem livre para andar mais puro,
mais junto à Natureza e mais seguro
do seu Amor, de todas as justiças.

Livre! para sentir a Natureza,
para gozar, na universal Grandeza,
Fecundas e arcangélicas preguiças.


João da Cruz e Sousa nasceu em Desterro, hoje Florianópolis (SC), a 24 de novembro de 1861 e faleceu na Estação de Sítio (MG) a 19 de março de 1898.

Ler do mesmo autor:
Antífona
Vida Obscura
Silêncios
Sorriso Interior
Violões que Choram
Ironia de Lágrimas
O Assinalado
Inefável
Sorriso Interior
Monja

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2015-03-18

NÃO REPARARAM NUNCA? - António Nobre

Não repararam nunca? Pela aldeia,
Nos fios telegráficos da estrada,
Cantam as aves, desde que o Sol nada,
E, à noite, se faz sol a Lua cheia.

No entanto, pelo arame que as tenteia,
Quanta tortura vai, numa ânsia aiada!
O Ministro que joga uma cartada,
Alma que, às vezes, dAlém-Mar anseia:

- Revolução! - Inútil. - Cem feridos,
Setenta mortos. - Beijo-te! - Perdidos!
- Enfim, feliz! - ? - ! - Desesperado. - Vem.

E as boas aves, bem se importam elas!
Continuam cantando, tagarelas:
Assim, Antônio! deves ser também.


António Pereira Nobre (nasceu no Porto a 16 de agosto de 1867 e foi vítima de tuberculose pulmonar, na Foz do Douro, Porto a 18 de março de 1900).

Ler do mesmo autor, neste blog:
Paz
O Teu Retrato
À Luz de Lua
Ao Cair das Folhas
Virgens que passais
Carta ao Oceano
A Leão XIII
Ladainha
Purinha
E a vida foi, e é assim, e não melhora
Na Praia lá da Boa Nova um dia

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2015-03-17

Quem é pobre sempre é pobre - António Botto

Quem é pobre sempre é pobre,
Quem é pobre nada tem;
Quem é rico sempre é nobre
E às vezes não é ninguém.
Complicada afirmação
Esta – de ter e não ter!...-
O que importa é ter razão,
Saber amar e sofrer!
Quanto a bens materiais,
Coisas que a sorte nos dá
Ou o trabalho conquista,
É tudo sem consistência:
- Antes a cruel saudade
Que me deu a tua ausência.


António Tomaz Botto nasceu a 17 de agosto de 1897, em Casal da Concavada, Abrantes e faleceu no Rio de Janeiro a 17 de março de 1959.

Ler do mesmo autor, neste blog:

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2015-03-16

A recusa das imagens evidentes - Natália Correia


foto : Violetas

Há noites que são feitas dos meus braços
E um silêncio comum às violetas.
E há sete luas que são sete traços
De sete noites que nunca foram feitas.

Há noites que levamos à cintura
como um cinto de grandes borboletas
E um risco a sangue na nossa carne escura
duma espada à bainha de um cometa

Há noites que nos deixam para trás
Enrolados no nosso desencanto
E cisnes brancos que são só iguais
À mais longínqua onda do teu canto.

Há noites que nos levam para onde
O fantasma de nós fica mais perto;
E é sempre a nossa voz que nos responde
E só o nosso nome estava certo...


Natália de Oliveira Correia (n. na Ilha de S. Miguel, Açores a 13 de setembro de 1923; m. em Lisboa a 16 de março de 1993).

Ler da mesma autora:
Bilhete para amigo ausente
O Espírito
Queixa das almas jovens censuradas
Poema destinado a haver domingo
O Sol nas noites e o Luar nos dias
Retrato Talvez Saudoso da Menina Insular
Boletim Meteorológico
Nictofagia
Na Câmara de Reflexão IV
A luz meridional que, rigorosa
Fiz um conto para me embalar
Poema dirigido ao deputado João Morgado

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2015-03-14

PADÊ DE EXU LIBERTADOR - Abdias do Nascimento

Ó Exu
ao bruxoleio das velas
vejo-te comer a própria mãe
vertendo o sangue negro
que a teu sangue branco
enegrece
ao sangue vermelho
aquece
nas veias humanas
no corrimento menstrual
à encruzilhada dos
teus três sangues
deposito este ebó
preparado para ti

Tu me ofereces?
não recuso provar do teu mel
cheirando meia-noite de
marafo forte
sangue branco espumante
das delgadas palmeiras
bebo em teu alguidar de prata
onde ainda frescos bóiam
o sêmen a saliva a seiva
sobre o negro sangue que circula
no âmago do ferro
e explode em ilu azul

Ó Exu-Yangui
príncipe do universo e
último a nascer
receba estas aves e
os bichos de patas que
trouxe para satisfazer
tua voracidade ritual
fume destes charutos
vindos da africana Bahia
esta flauta de Pixinguinha
é para que possas chorar
chorinhos aos nossos ancestrais
espero que estas oferendas
agradem teu coração e
alegrem teu paladar
um coração alegre é
um estômago satisfeito e
no contentamento de ambos
está a melhor predisposição
para o cumprimento das
leis da retribuição
asseguradoras da
harmonia cósmica

Invocando estas leis
imploro-te Exu
plantares na minha boca
o teu axé verbal
restituindo-me a língua
que era minha
e ma roubaram
sopre Exu teu hálito
no fundo da minha garganta
lá onde brota o
botão da voz para
que o botão desabroche
se abrindo na flor do
meu falar antigo
por tua força devolvido
monta-me no axé das palavras
prenhas do teu fundamento dinâmico
e cavalgarei o infinito
sobrenatural do orum
percorrerei as distâncias
do nosso aiyê feito de
terra incerta e perigosa

Fecha o meu corpo aos perigos
transporta-me nas asas da
tua mobilidade expansiva
cresça-me à tua linhagem
de ironia preventiva
à minha indomável paixão
amadureça-me à tua
desabusada linguagem
escandalizemos os puritanos
desmascaremos os hipócritas
filhos da puta
assim à catarse das
impurezas culturais
exorcizaremos a domesticação
do gesto e outras
impostas a nosso povo negro

Teu punho sou
Exu-Pelintra
quando desdenhando a polícia
defendes os indefesos
vítimas dos crimes do
esquadrão da morte
punhal traiçoeiro da
mão branca
somos assassinados
porque nos julgam órfãos
desrespeitam nossa humanidade
ignorando que somos
os homens negros
as mulheres negras
orgulhosos filhos e filhas do
Senhor do Orum
Olorum
Pai nosso e teu
Exu
de quem és o fruto alado
da comunicação e da mensagem

Ó Exu
uno e onipresente
em todos nós
na tua carne retalhada
espalhada por este mundo e o outro
faça chegar ao Pai a
notícia da nossa devoção
o retrato de nossas mãos calosas
vazias da justa retribuição
transbordantes de lágrimas
diga ao Pai que nunca
no trabalho descansamos
esse contínuo fazer
de proibido lazer
encheu o cofre dos exploradores
à mais valia do nosso suor
recebemos nossa
menos valia humana
na sociedade deles
nossos estômagos roncam de
fome e revolta nas cozinhas alheias
nas prisões
nos prostíbulos
exiba ao Pai
nossos corações
feridos de angústia
nossas costas chicoteadas
ontem
no pelourinho da escravidão
hoje
no pelourinho da discriminação

Exu
tu que és o senhor dos
caminhos da libertação do teu povo
sabes daqueles que empunharam
teus ferros em brasa
contra a injustiça e a opressão
Zumbi Luiza Mahin Luiz Gama
Cosme Isidoro João Cândido
sabes que em cada coração de negro
há um quilombo pulsando
em cada barraco
outro palmares crepita
os fogos de Xangô iluminando nossa luta
atual e passada

Ofereço-te Exu
o ebó das minhas palavras
neste padê que te consagra
não eu
porém os meus e teus
irmãos e irmãs em
Olorum
nosso Pai
que está
no Orum

Laroiê!

Abdias do Nascimento (Franca, SP, 14 de março de 1914 — Rio de Janeiro, 24 de maio de 2011

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2015-03-13

28 (de 35 Poemas de Amor) - Wilson Bueno

Cai-me ao colo Amor de súbito
Um susto, um esgar, um bramido.
Estertor de tudo – desamor Amor ao avesso?
Quero-vos lúmpen, maltrapilha, campesina
Quero-vos riacho e manso açude.
Amor, entanto, vocifera pontiagudo
Mural de rochas e lascas e espelhos e cardumes
A fingir do Amor – casta figura? –
O Desamor em pêlo, às turras,
Aos vozeios, facas, murros, unhas
A alvoroçar o silêncio de agulhas.


Wilson Bueno (Jaguapitã, 13 de março de 1949 - Curitiba, 31 de maio de 2010)

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2015-03-12

O Primeiro Dente - Bastos Tigre

A mamãe bate palmas de contente,
Do papai rejubila a alma festiva;
Cantam risos pelo ar... Que é que motiva
Essa emoção que alegra toda gente?

É que, abrindo a boquinha, sorridente,
Bebê, no róseo alvéolo da gengiva,
Deixou ver a promessa, a perspectiva,
O breve ensaio do primeiro dente.

Agora, a acompanhar-lhe o crescimento,
Dia a dia a mamãe enternecida
Terá para o dentinho o olhar atento.

Outro virá depois... outro em seguida...
E ei-lo, o Bebê, com o sólido instrumento
Com que no mundo se defende a vida!


Manuel Bastos Tigre nasceu em Recife, Pernambuco, a 12 de março de 1882 e faleceu em 1 de agosto de 1957 no Rio de Janeiro.

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2015-03-11

Na Aldeia - Gonçalves Crespo

Duas horas da tarde. Um sol ardente
nos colmos dardejando e nos eirados.
Sobreleva aos sussurros abafados
o grito das bigornas estridente.

A taberna é vazia; mansamente
treme o loureiro nos umbrais pintados;
zumbem à porta insectos variegados,
envolvidos do sol na luz tremente.

Fia à soleira uma velhinha: o filho
no céu mal acordou da aurora o brilho
saiu para os cansaços da lavoura.

A nora lava na ribeira, e os netos
ao longe correm seminus, inquietos,
no mar ondeante da seara loura.


in Poemas Portugueses Antologia das Poesia Portuguesa do Séc. XIII ao Séc. XXI, Porto Editora

António Cândido GONÇALVES CRESPO nasceu nos subúrbios do Rio de Janeiro a 11 de março de 1846 e morreu, tuberculoso, em Lisboa, a 11 de junho de 1883.

Ler do mesmo autor:
A Noiva
O Relógio
Nunca eu te lesse, balada!
Na Roça
Mater Dolorosa
O Coveiro

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2015-03-10

Disse-te adeus e morri - Vasco de Lima Couto (na voz de Amália Rodrigues)



Disse-te adeus e morri
E o cais vazio de ti
Aceitou novas marés.
Gritos de búzios perdidos
Roubaram dos meus sentidos
A gaivota que tu és.

Gaivota de asas paradas
Que não sente as madrugadas
E acorda noite a chorar.
Gaivota que faz o ninho
Porque perdeu o caminho
Onde aprendeu a sonhar.

Preso no ventre do mar
O meu triste respirar
Sofre a invenção das horas,
Pois na ausência que deixaste,
Meu amor, como ficaste,
Meu amor, como demoras.


Vasco de Lima Couto (Porto, 26 de Novembro de 1923 - Lisboa, 10 de Março de 1980)

Do mesmo autor ler (e ouvir) no Nothingandall:
Noite na voz de António Mourão
Retrato
Pomba Branca na voz de Max e no duo Paulo de Carvalho + Dulce Pontes

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2015-03-09

DO ALTO MAR - Álvaro Feijó


Tripulação!
às gáveas e às enxárcias;
ao leme e aos cordames;
atenta à tempestade
que anda no Mar
e vai
no nosso coração.

Tripulação!
Ajuda a tempestade...
Deixa ruir o mastro da mesena!
Lança à boca das ondas o sextante!
Deixa ao sabor das vagas o navio!
Não tenhas pena!

Quando haja só convés ao raso de água:
Tripulação...
Atenta.


Álvaro de Castro e Sousa Correia Feijó (nascido a 5 de junho de 1916, em Viana do Castelo, morreu em Coimbra a 9 de março de 1941)

Ler do mesmo autor:
Natal
Os Dois Sonetos de Amor da Hora Triste
A Nau Perdida
Senhor! De que Valeu o Sacrifício?
Se os Homens Quisessem

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2015-03-07

As Time Goes By - Fernando Tavares Rodrigues

Como o
tempo passa
Enquanto ficamos sós...
Passamos nós pelo tempo
Ou passa o tempo por nós?
Bebamos os dois á taça
O que afinal sou eu só
- ambígua raiva, duelo,
dualidade num só.

Fernando Jácome de Castro Tavares Rodrigues (nasceu em Lisboa, no dia 7 de Março de 1954 e faleceu em 1 de março de 2006)

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2015-03-06

Cem anos de solidão - Gabriel Garcia Marquez

"Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo. Todos os anos, pelo mês de março, uma família de ciganos esfarrapados plantava a sua tenda perto da aldeia e, com um grande alvoroço de apitos e tambores, dava a conhecer os novos inventos".

Assim começa a versão portuguesa de Cien años de soledad, de Gabriel García Márquez, Prémio Nobel da Literatura em 1982, nascido faz hoje 88 anos. Foi considerada a segunda obra mais importante de toda a literatura hispânica, ficando apenas atrás de Dom Quixote de la Mancha. Faz parte também da lista dos 100 Livros do Século de Le Monde. Na passagem do 84º aniversário do autor colombiano, recordámo-lo aqui e fica a sugestão de leitura.

Gabriel José García Márquez (n. Aracataca, Colômbia, 6 de março de 1927 — m. Cidade do México, 17 de abril de 2014)

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2015-03-05

Não choreis os mortos - Pedro Homem de Mello

Não choreis nunca os mortos, esquecidos
Na funda escuridão das sepulturas.
Deixai crescer, à solta, as ervas duras
Sobre os seus corpos vãos, adormecidos.

E quando, à tarde, o Sol, entre brasidos,
Agonizar…guardai, longe as doçuras
Das vossas orações, calmas e puras,
Para os que vivem, mudos e vencidos.

Lembrai-vos dos aflitos, dos cativos,
Da multidão sem fim dos que são vivos,
Dos tristes que não podem esquecer.

E, ao meditar, então, na paz da Morte,
Vereis, talvez, como é suave a sorte
Daqueles que deixaram de sofrer.


Pedro da Cunha Pimentel Homem de Mello (n. no Porto a 6 de setembro de 1904 - m. Porto, 5 de março de 1984).

Ler do mesmo autor, neste blog:

Oásis
Bailado
Véspera
Berço
Obrigado
Uma Ânsia de Nudez
Povo que lavas no rio
Fado
Revelação
Miragaia
O Bailador de Fandango
Solidão
Biografia

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2015-03-04

Em que Emprego o Meu Tempo? - Eugénio de Castro

Em que emprego o meu tempo? Vou e venho,
Sem dar conta de mim nem dos pastores,
Que deixam de cantar os seus amores,
Quando passo e lhes mostro a dor que tenho.

É de tristezas o torrão que amanho,
Amasso o negro pão com dissabores,
Em ribeiros de pranto pesco dores,
E guardo de saudades um rebanho.

Meu coração à doce paz resiste,
E, embora fiqueis crendo que motejo,
Alegre vivo por viver tão triste!

Amor se mostra nesta dor que abrigo:
Quero triste viver, pois vos não vejo,
Nem sequer muito ao longe vos lobrigo.


in Depois da Ceifa

Eugénio de Castro e Almeida  (n. em Coimbra a 4 março de 1869; m. em Coimbra, a 17 de agosto de 1944)

Ler do mesmo autor:
Engrinalda-me com os teus braços
Circe
Um Sonho
A Laís
Tua frieza aumenta o meu desejo
Presságios
Amores

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2015-03-03

Inverno - Bulhão Pato

Rondou o vento ao Sul, e é ríspida a lufada!
Temos, não há que ver, a invernia pegada!

Se nos fins do Verão caíram as branduras,
Nem meia enxada d’água entrou nas terras duras.

Aqui há chão barroso, e chão tão apertado,
Que, sem água a fartar, não vai nem a machado!

Em baixo, ao rés da Costa, às folhas salgadias,
Qualquer chuva lhes basta, — e mau, se as ventanias
Começam de puxar, que as vagas altaneiras
Alagam, no junção, vinhas e sementeiras!

Nas cepas, isso então — e mais depois das cavas —
É praga que lhes dá, o sal das ondas bravas!

Bem raro o lavrador tem dias sem cuidados;
No monte o tempo é um, outro nos descampados.
Só lhe leva a melhor, no rude labutar,
O marinheiro audaz, nas solidões do mar!

Mas no campo, contudo, há dias prazenteiros:
Agora o céu nublado, e os fortes aguaceiros,
São para o agricultor como manhã de rosas!

Venham chuvas ainda, e venham mais copiosas.
Por todo esse Alentejo, aos novos chaparrais,
Águas a desabar, são rara vez de mais!

Pode a cheia inundar os prados da lezíra;
Índa que venha a flux, por enquanto, não tira;

Com que respeite o gado, e deixe bom nateiro,
Não é nunca fatal antes de entrar Janeiro!

Cogitando em tudo isto, o lavrador, agora,
Alegre esfrega as mãos — e caia chuva, embora!

Porém o cavador, que vive só da enxada,
Como se há de amanhar, faltando-lhe a soldada?

Na casa do ganhão é que a invernia é séria!…
Uns dias sem trabalho… e basta! Entra a miséria!

Na cidade, no campo, enfim, seja onde for,
Para os pobres, a vida é quase sempre a dor!

Vamos a espairecer! Saltou o vento ao norte;
É lâmina da serra, e do mais fino corte!

Lá vem abrindo o sol! Toda a amplidão domina!
Só do vale o saúda o incenso da neblina!

Que animação no campo! A rápida caudal
Serpeia, pela encosta, em cobras de cristal!

No mimoso da várzea, e nas viçosas faldas,
Abrem floritas d’ouro, em chão que é d’esmeraldas!

Os cavalos beirões, de guizos chocalheiros,
Vêm de Sesimbra à venda; atrás os recoveiros.

Tiram o arado os bois. Nos altos e chapadas,
Desbravando o torrão, fuzilam as enxadas!

O passaredo alegre a revoar em bando;
Ao rés da choupanita as crianças brincando;
A mãe, sempre a lidar, ao sol corando as roupas,
Batidas ao sopé das desfolhadas choupas!

O carro gémeos chega dos estevais,
Carregado de tojo e ramas de pinhais.

As vacas no relvão, cabrinhas pelas fragas,
E toda azul ferrete, ao longe, a flor das vagas!

No escuro d’esta lua, a caça entra de certo.
Já saltou galinhola! O mato fica perto.

Deixai que alteie o sol, senão, com a geada,
Vão-se as ventas dos cães, e não fazemos nada!

Anos, e labutar, e lagrimas!… embora!
Auras da juventude, aspiro-vos agora!
Parece que, rompendo o sol na imensidade,
Rompe dentro de mim o sol da mocidade!

*

Na jardia e no souto, a entrada não foi grande ;
Nem um pombo trocaz a procurar a glande 1

Porém não falta ensejo, — até á Conceição,
Para entrada real é prospera a sazão!

Agora palestrar, em volta da lareira.

Ao grato crepitar dos toros da azinheira!

Aperta, lá por fora, o límpido nordeste ;
Caça de arribação gosta de tempo agreste.

Com sessenta e mais quatro, e quatro bem contados
Inda rompo com alma os matagais fechados

Quero que venham ver amanhã, praguentos,
Como bate o montado, a minha Tullia, a ventos.

in Poemas do Monte

Raimundo António de Bulhão Pato (Bilbau, 3 de março de 1828 — Monte da Caparica, 24 de agosto de 1912)

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2015-03-02

Cantiga - Cabral do Nascimento

Deixa-te estar na minha vida
Como um navio sobre o mar.

Se o vento sopra e rasga as velas
E a noite é gélida e comprida
E a voz ecoa das procelas,
Deixa-te estar na minha vida.

Se erguem as ondas mãos de espuma
Aos céus, em cólera incontida,
E o ar se tolda e cresce a bruma,
Deixa-te estar na minha vida.

À praia, um dia, erma e esquecida,
Hei, com amor, de te levar.
Deixa-te estar na minha vida.
Como um navio sobre o mar.


in 366 poemas que falam de amor, antologia organizada por Vasco da Graça Moura, Quetzal Editores

João Cabral do Nascimento (n. no Funchal, ilha da Madeira em 22 de Março de 1897; m. em 2 de Março de 1978 em Lisboa)


Ler do mesmo autor, neste blog:
Canção: O lenço com que me acena
Canção: Fui ao Mar Buscar Sardinha
Vão as Águas Nostálgicas do Rio;
Brasil
Adeus


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