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2004-09-28

Tabacaria

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
Àparte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas-
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que fôr, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.

O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

Álvaro de Campos, 15/01/1928 (um dos heterónimos de Fernando Pessoa)
[Presença, Coimbra, Julho 1933]

2004-09-23

As listas de colocação de professores

Este assunto é sobre o que não há. Era para haver. Foi sucessivamente adiado. E ainda não há.
Apesar das promessas da ministra. Não há.

De quem é a culpa?
Da ministra? Não ela só o é há tão pouco tempo!
Deste governo? Não ... ele só o é há tão pouco tempo!
Do anterior governo? Não…Como responsabilizar duma coisa que (não) se passa agora alguém que já não existe agora?
Dos professores? Bem a lista refere-se a eles…mas não. Não se pode confundir o objecto com o sujeito.
Dos alunos? Bem …se não houvessem alunos…não havia professores…não seriam precisas listas de colocação de professores. Mas obviamente que não. Eles são as maiores vítimas.
Do país? Boa …é isso... a culpa é do país… atrasado que somos. Mas o país é uma abstracção…e é tão bonito. Como pode ser culpado de não haver listas de colocação de professores…

Já sei a culpa é do sistema… sim... do sistema …informático …e do outro… .

Agora resta esperar por 30 de Setembro para ver se temos listas manuais.
Pois é …quando não há alternativas melhores…faça à mão.

2004-09-21

Todas as cartas de amor são - Álvaro de Campos

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
D’essas cartas de amor
É que são ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas ,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)

Álvaro de Campos (um dos heterónimos de Fernando Pessoa)

2004-09-20

A classe média que pague a crise

O governo de Portugal anuncia o fim dos benefícios fiscais em IRS relativos aos diferentes instrumentos de poupança que durante anos andou a pedir aos portugueses e a incentivá-los
que fizessem.

Numa altura em que segundo rezam as estatísticas e os factos demonstram :

* Os níveis de endividamento das famílias é elevado

* O estado vem progressivamente tomando medidas de descomprometimento social
designadamente em relação ao assegurar de prestações de reforma condignas

* Não há uma verdadeira política de habitação

* Aumenta o custo das propinas, sem que esse acréscimo de receitas seja canalizado para a
política de educação,

O governo vem agora dizer que as contas Poupança-Habitação (PPH) e os Planos Poupança Reforma/Educação (PPR/E) vão deixar de conferir benefícios fiscais.

Não há dúvidas sobre a coerência da política social, económica e fiscal deste governo.

A classe média que pague a crise, sem que se veja, no entanto, uma redistribuição mais favorável aos pobres; pelo contrário, os pobres aumentam, os ricos podem não aumentar (em número) mas são cada vez mais ricos e a classe média, bem com medidas destas, certamente passará
a ser mais pobre.

2004-09-16

As fábricas do futuro e os engenheiros

No futuro as fábricas só vão ter como trabalhadores um cão e um engenheiro.

O resto vai ser tudo automatizado.

Vão lá ter o engenheiro para dar de comer ao cão.

Perguntarão vocês para que serve o cão. Não é óbvio?

O Cão, meus amigos, está lá para não deixar o engenheiro mexer nas máquinas.

Futebol - Redução de Clubes nas Ligas Profissionais

Como adepto interessado do futebol causa-me severa preocupação o que se vai passando sobre a tão necessária redução do número de clubes nos Campeonatos Profissionais de futebol.

Mais uma vez tantos estudos e muito pouco se vê em termos de concretização.

O que temos ouvido, desde a deliberação do Conselho Superior de Desporto de promover a redução de 18 para 16 clubes nas duas ligas profissionais do futebol português, em termos de declarações de responsáveis da Federação e da Liga, reuniões e mais reuniões sem que nada se concreto expire, leva-nos a supor, que mais uma vez nada vai ser feito.

Em primeiro lugar porque os campeonatos já começaram, em segundo lugar porque esta redução ao libertar quatro clubes a mais que passariam a ser introduzidos na 2ª Divisão B, sendo que a solução ou proposta que se ouve por aí obrigaria a que nem sequer o vencedor de cada zona tivesse acesso imediato à 2ª Liga profissional, tem consequências que não agradam.

Pois bem em vez de adiar a decisão para o próximo ano (e quando lá chegarmos certamente voltaremos a ter os mesmos problemas e assistiremos às mesmas discussões), porque não se adopta já com efeitos nesta época, que aliás ainda está a começar, um esquema em duas fases, que proponho seja o seguinte:

Primeira época (já esta em curso)

1ª LIGA Em vez de descerem os habituais três lugares desceriam quatro (isto é desceria apenas mais um clube do que é normal). Da 2ª Liga em vez de subirem os habituais três primeiros classificados esta época excepcionalmente subiriam apenas dois clubes.
Concluindo, no final desta época desportiva ou seja na próxima época a 1ª Liga já teria apenas 16 Clubes ( actualmente 18 , descia +1 e subiria da 2ª Liga -1 relativamernte ao habitual)

2ª LIGA Com os ajustamentos feitos na 1ª LIGA a 2ª Liga ficaria afectada pela entrada proveniente da descida da 1ª liga de mais um clube e da permanencia na 2ª Liga por não subida de também um (o 3º classificado que deixaria de subir). Sendo assim dos 18 habituais por força desse ajustamento passaria para 20. Pois bem, isso não aconteceria, pois sugiro a descida de mais dois clubes do que é hábito, isto é em vez de descerem três desceriam 5, proporcionando que na próxima época a 2ª LIGA mantivesse os mesmos 18 clubes. Da 2ª Divisão B continuariam a subir os vencedores de zona.

Esta 2ª divisão B apenas era afectada pela presença assim de mais dois clubes que seriam eliminados para os distritais por um concomitante ajustamento residual, aliás, nas descidas aos distritais.


Na próxima época promover-se-ia, por sua vez, a redução de 18 para 16 clubes na 2ª LIGA, mediante a descida de 5 clubes e a subida habitual dos vencedores de zona da 2ª Divisão B.

Esta redução de 18 para 16 em duas etapas, ou seja em dois anos, permitia atingir o objectivo pretendido sem que houvesse necessidade de um grande aumento no número de clubes a descer, nem em diminuição dos clubes a subir (designadamente da 2ª Divisão B para a 2ª Liga), com excepção nesta época da 2ª Liga que só subiriam 2 em vez dos habituais 3.

Depois disto, assunto resolvido a contento de todos, acho eu ….

2004-09-15

Poesia - Fernando Pessoa (II)

Sou vil, sou reles, como toda a gente,
Não tenho ideais, mas não os tem ninguém.
Qurm diz que os tem é como eu, mas mente.
Quem diz que busca é porque não os tem.

É com a imaginação que eu amo o bem.
Meu baixo ser porém não mo consente.
Passo, fantasma do meu ser presente,
Ébrio, por intervalos, de um Além.

Como todos não creio no que creio.
Talvez possa morrer por esse ideal.
Mas, enquanto não morro, falo e leio.

Justificar-me? Sou quem todos são...
Modificar-me? Para meu igual?...
-Acaba lá com isso, ó coração!

2004-09-14

Poesia - Fernando Pessoa

Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir.
Sentir tudo de todas as maneiras.
Sentir tudo excessivamente,
Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas
E toda a realidade é um excesso, uma violencia,
Uma alucinação extraordinariamente nítida
Que vivemos todos em comum com a fúria das almas,
O centro para onde tendem as estranhas forças centrífugas
Que são as psiques humanas no seu acordo de sentidos.

Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas,
Quanto mais personalidades eu tiver,
Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,
Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,
Quanto mais unificadamente diverso, dispersamente atento,
Estiver, sentir, viver, fôr,
Mais possuirei a existencia total do universo,
Mais completo serei pelo espaço inteiro fora,
Mais análogo serei a Deus, seja ele quem fôr,
Porque, seja ele quem fôr, com certeza que é Tudo,
E fora d'Ele há só Ele, e Tudo para Ele é pouco
...

2004-09-09

Stock Market - Good times to be exposed

Com sinais de recuperação das economias os mercados bolsistas dão sinais de expansão com expectativas de boas valorizações durante o 2º semestre de 2004 e para 2005. O terrorismo e os preços do petróleo são agora as maiores ameaças.

Good signals for international economic recovering give expectations of stocks raising for next months. Terrorism and oil prices are now the main problems.

2004-09-03

Russian troops in Beslan's School

Que dizer da actuação das tropas russas no caso da Escola de Beslan. As autoridades agiram bem ou foram precipitadas? As consequências foram minimizadas ou as mortes podiam ter sido evitadas? E há motivos justificados para estas actuações por parte dos "terroristas" chechenos?
Muitas questões e nenhuma resposta, pelo menos para mim e por enquanto...
Diga-me a sua opinião.